quinta-feira, 7 de outubro de 2021

Um criptograma [trecho]

[…]
No dia seguinte, na escola, ela voltou a mostrar o estêncil para Eaton e perguntou ao menino se ele não vira alguém usando aquilo. Ele disse que não, mas Sharon sabia que podia estar mentindo. Ela perguntou se o menino a vira na véspera. Muito lentamente, ele balançou a cabeça em negativa, o preto úmido de seus olhos sem piscar.
Naquele dia, ela tentou estimular uma aula de leitura, mas a maioria das crianças estava inquieta, recusando-se a acompanhar, então ela os colocou para montar animais com cola e cartolina. De qualquer modo, estava quase na hora do almoço.
Quando as crianças saíram para o recreio, Sharon se viu pensando nas pichações que vira no dia anterior, desejando revisitá-las, como se tivesse encontrado Adam ali. Ele tinha nove anos quando David a deixara. Ela temia que o ex-marido lutasse pela custódia do filho, mas ele não demonstrou nenhum interesse. Adam se tornara uma criança calada. E um leitor mal-humorado.
Ela erguia a cabeça e ele estava no sofá, depois passou para o outro lado da sala e, então, havia desaparecido.
Enquanto as crianças corriam pelo gramado e se penduravam no trepa-trepa, ela se lembrou de como Adam gostava de atletismo quando criança, de sua velocidade e graça ao correr. O truque de não pensar nele no tempo presente já se tornara um hábito. Ela não pensava em onde ele poderia estar naquele momento, ou o que poderia estar fazendo, mas mantinha suas emoções firmemente ligadas à vida deles antes da fuga, e ela iria tão longe quanto necessário nessas emoções, a fim de se lembrar de um menino que não tinha raiva de nada, que não via injustiça em cada empreendimento humano.
Essa era sua qualidade mais agressiva, o seu senso de justiça, e ele não admitia meios-termos. No início da adolescência, quando tomavam o desjejum após a missa, ele começou a lhe fazer perguntas. Logo ela viu o filho lendo a história do catolicismo, então do cristianismo em geral, e começou a ficar com medo de se sentar com ele à mesa de jantar, preocupada com o que Adam poderia querer lhe dizer.
Certa vez, o menino insistiu que ela ficasse calada enquanto recitava a história das Cruzadas. Ele não parou até ela começar a chorar, e ele a repreendeu por isso. Então, perguntou se ela sabia qual fora o posicionamento de sua igreja durante a Segunda Guerra Mundial. Quando a nova guerra começou, ele já estava irredutível em relação a assuntos ligados à igreja ou ao Estado.
Na última noite, enquanto espalhava pimenta vermelha sobre a carne assada, ele disse:
Mas, mãe, você realmente acredita que o céu ou o inferno são lugares de verdade, onde as pessoas moram, e que serão bons ou ruins dependendo de quão bem você seguir alguma das interpretações da Bíblia?
Ele cortava a carne com golpes breves e firmes.
Bem, eu acredito — respondeu ela. — Claro que acredito.
Por favor, olhe à sua volta — continuou Adam, ainda mastigando. — Apenas por um segundo, pense na realidade, na expansão da matéria, na forma do universo. Você realmente acredita que o folclore criado por pessoas completamente selvagens e sem instrução de algum modo explica tudo isso? — Ele mordia cada palavra, e sua cara feia denunciava um desgosto alarmante. — E você vai votar tendo isso como critério?
Ela manteve a cabeça voltada para o assado. Por que ele não falava como os outros adolescentes? Por quê? Será que ele não podia olhar para o teto sobre suas cabeças, para a comida à mesa, e admitir a bondade essencial da vida? Deus sabe que Sharon tinha razões suficientes para ser amargurada, mas ela persistiu. Persistiu com a fé, e nada mais.
Então, como você justifica votar em um idiota belicista e perdulário em nome de seu Deus pacifista e não materialista?
Ela baixou o garfo calmamente.
Sabe, você já deixou muito claro que não compartilha de minhas crenças. Eu acredito que devemos apoiar nossos líderes e suas decisões. Você não. Mas, como sou aquela que nos fornece alimento e abrigo, acho que você poderia fazer a gentileza de não me atacar por discordarmos sobre política.
Ele saltou sobre o comentário da mãe como um gato sobre um rato.
Aí está! Não se trata apenas de uma diferença de opinião! — Ele se inclinou sobre o prato, o cabelo louro caindo ligeiramente diante de seu rosto. — Não é apenas um desentendimento. Estou falando de questões fundamentais sobre o bem e o mal.
Ah! — exclamou ela. — Mas você não disse que o céu e o inferno não existem? Então como haveria o bem e o mal?
Ele fez uma pausa. Sharon pensou ter sido porque ela o pegara.
O que você quer dizer com isso?
Se você diz que não há céu e inferno, então o que é o bem e o mal? Por que ser bom, afinal de contas?
Ele pareceu autenticamente horrorizado.
Mãe, você está me dizendo que, se não houver céu, não há motivo para ser bom?
Sharon deu de ombros. Ela não achava ter dito aquilo, mas talvez sim. Parecia mais idiota quando ele repetia.
Ser bom significa fazer as coisas sem pensar em recompensa, mãe. Era você quem deveria ensinar isso para mim.
Ele ficou em silêncio e, então, pareceu satisfeito. Adam comeu a comida que ela preparara, talheres retinindo contra o prato. Mais uma vez, a casa escura acomodou-se ao redor dos dois. Mas, pela primeira vez, ela acalentou uma raiva silenciosa. Como se o filho tivesse quebrado algo que lhe era caro por nenhum outro motivo afora ver aquilo se quebrar. Ela não conseguia suportar sua presunção, vê-lo se divertir à sua custa enquanto mastigava a carne assada que ela preparara. Por que deveria tolerar tamanho desrespeito?
Eu me pergunto: se você é tão esperto, por que não tem amigos? Hein?
Ele baixou a faca e olhou para ela.
Se você sabe tudo, Senhor Bem-Informado, então talvez possa me dizer por que nunca vai a uma festa? Diga-me por que você não tem uma namorada? Já que é tão mais esperto do que todo mundo, deveria saber.
Ele se levantou da mesa. Ela viu a sombra do filho sobre seu prato, mas não ergueu os olhos.
Sharon estava quase tremendo de medo do que ele poderia dizer.
Você nem mesmo é capaz de ver quão doente está. — A voz de Adam soou trêmula de desgosto.
Ele se afastou.
Como alguém podia dizer aquilo para a própria mãe? Qual seria a cura para um menino que teve todas as bênçãos, exceto, talvez, um bom pai, mas que ainda assim insistia em ver a escuridão em tudo? Ela achava que, na verdade, o filho estava implorando pela luz de Cristo, e que parte de sua inquietude derivava de sua incapacidade de entender aquilo. Então ela rezou naquela noite, pedindo que a luz de Cristo o encontrasse.
Ele foi embora dois dias depois, deixando um breve bilhete explicando que não voltaria mais.
[…]

Nic Pizzolatto, in Daqui até o Mar Amarelo e outros contos

Nenhum comentário:

Postar um comentário