O sobrado dominava a praça, que era um
bosque cheio de árvores, ipês, tipuanas e palmeiras, muitas delas
plantadas pelo doutor Jorge. Na frente passava o bonde que percorria
a rua principal, tão comprida que diziam que Lavras era cidade de
uma rua só. Ao lado ficava uma igreja colonial, velhíssima, onde
moravam andorinhas e morcegos que faziam suas revoadas ao entardecer
e no início da noite.
No sobrado tudo era grande. As portas,
grandes na largura, grandes na altura, grandes na grossura. Dir-se-ia
que eram portas para deixar passar gigantes. Os corredores, largos
demais, longos demais. E o pé direito das paredes era muito alto.
O sobrado tinha cinco portas. As duas
portas da esquerda eram portas da barbearia. As duas portas da
direita eram portas do armazém. A porta do meio, porta de gigantes,
de duas bandeiras, era a porta de entrada. Ali o ar tinha o perfume
dos perfumes da barbearia. A qualquer hora. Passada a porta de
entrada, caminhando-se pelo corredor, ao nos aproximarmos da escada,
o cheiro de perfume era substituído pelo cheiro de mofo que vinha
dos cômodos permanentemente fechados e úmidos. À esquerda estava a
escada, um primeiro lance com onze degraus, um segundo lance com
treze degraus, divididos por um patamar. Terminada a escada, à
direita, estava a sala de visitas. Duas portas no mesmo batente. A
porta exterior, de madeira, era outra porta de gigantes. A segunda,
interior, mais delicada, tinha caixilhos de alto a baixo com vidros
coloridos importados, vermelhos, azuis, amarelos, verdes. O teto
barroco, abaulado, era decorado com frisos dourados. No ângulo do
fundo, o piano Pleyel e seus candelabros. Um conjunto de sofá e
cadeiras de palhinha, produto artístico do artesanato local do
século XIX. Consoles e mesas de mármore com jarras de cristal. Eu
imaginava que o enorme e pesado espelho pendurado na parede dos
fundos, sobre o sofá, pudesse cair sobre uma visita... Sempre vazia.
Só eu dentro dela, olhando as coisas. O espaço provoca estranhas
deformações. Sentia-me menor do que eu era. Nos grandes espaços os
homens se apequenam. Como a Alice no País das Maravilhas: uma hora
era ela tão grande que quase não cabia no quarto, outra hora ela
era tão pequena que parecia um ratinho.
Mas eu sabia, por estórias que me
contaram, que nos anos da riqueza aquela sala fora palco de muitas
festas, as chamas das velas refletidas nos espelhos e nos cristais
dos lustres. Se, do final da escada, se virasse para a esquerda, era
de novo um corredor largo que conduzia ao ventre da casa. Caminho
interditado às visitas de cerimônia. Não deveriam passar da sala
de visitas, lugar das delicadezas, das cerimônias, do cuidado com as
palavras, do café com sequilhos. A sala de visitas era imperativa. O
arranjo dos móveis não dava lugar a dúvidas. Os visitantes
deveriam assentar-se nos lugares designados. Ali não havia lugar
para imprevistos. Tudo estava em ordem. Cada coisa no seu lugar.
À esquerda do corredor ficava o Quarto
do Mistério. Ao final do corredor a sala de jantar, com oito janelas
envidraçadas dando para o poente. Vi muitos pores de sol através
delas. As janelas eram emolduradas por uma trepadeira onde, à noite,
os gambás passeavam com seus olhos brilhantes, olhando curiosos e
sem medo as pessoas reunidas na sala. A pintura das paredes, a óleo,
de um verde suave, era adornada, bem no alto, por uma franja de
miniaturas, obra de um artista, cenas marinhas e bucólicas. Num
lugar do assoalho, próximo a uma coluna de madeira, havia uma argola
de ferro pregada às tábuas largas cuja função nunca me foi
explicada. Talvez ninguém soubesse. Minhas fantasias infantis me
faziam imaginar que ali, em outros tempos, se amarravam escravos. À
direita, um console de mármore com uma bilha de barro cheia d’água
e copos. Um relógio carrilhão estava pendurado na parede, olhando
para o poente. Ao lado do relógio uma porta que levava ao quarto de
badulaques. O quarto de badulaques era um quarto do mistério ainda
aberto ao público. Ao centro, uma grande mesa onde, em tempos de
riqueza e de família grande, se serviam as refeições. Para se ir
de um quarto a outro passava-se por dentro dos intermediários. Havia
neles um aveludado e discreto perfume de urina, resultado de milhares
de noites de urinóis cheios que eram esvaziados pelas manhãs em
procissão, cada pessoa carregando discretamente o seu, na direção
do banheiro, tarefa humilde que, em outros tempos, fora realizada
pelas escravas. Fui testemunha de algumas colisões de urinóis sem
grandes consequências, a não ser o susto e o barulho metálico dos
penicos. Por que, em vez dos urinóis, as pessoas não se serviam do
banheiro, eis aí uma pergunta para a qual nunca obtive resposta.
Acho que se tratava de um hábito dos tempos em que a “casinha”
ficava do lado de fora da casa e dava medo ir lá fora durante a
noite. O dito odor era tão natural que nem me dava conta de que era
cheiro de urina. Só me apercebi disso muitos anos depois. Não era
ruim. Ele era parte do espaço, ao lado das cadeiras, das camas, dos
criados-mudos, dos quadros.
Da sala de jantar saía um outro
corredor, na direção da cozinha e do banheiro. Nele havia três
quartos. No primeiro dormia um tio. O segundo era o de hóspedes,
onde ficávamos eu e minha mãe. O último, na verdade, não era um
quarto. Era usado como uma copa. Lá ficavam o grande filtro, a
máquina de fazer sorvete, abandonada, mesa e cadeiras onde se faziam
as refeições, e um enorme armário branco, onde, na parte superior,
se guardava um jogo de porcelana inglesa que nunca foi usado e, na
parte inferior, se guardavam bananas-prata. O cheiro das
bananas-prata, amarelas, pintadas de preto, enchia o corredor de
alegria. Até hoje as bananas-prata são as minhas preferidas. Uma
banana-prata bem madura com um copo de leite gelado é um manjar
digno dos deuses...
Depois vinha a cozinha, com um enorme
fogão de ferro. Finalmente o banheiro, com uma privada
artisticamente decorada, importada da Inglaterra, e duas banheiras. A
banheira dos homens era normal, com os tradicionais pés de galinha
sobre bolas. A banheira das mulheres, nunca vi igual. Ela se parecia
com uma poltrona grande, muito grande, de encosto reclinado e assento
afundado. As pernas de quem tomava banho ficavam pendentes, do lado
de fora. Não sei as razões por que as mulheres ganharam banheira
tão estranha. Talvez fosse para impedir que algum homem tomasse
banho nela. O importante era que os homens tomassem banho numa
banheira e as mulheres tomassem banho na outra banheira. Seguro
morreu de velho. Todo cuidado é pouco.
Depois do banheiro, ao final do corredor,
havia a escada escura e estreita, lembro-me do cheiro de mofo, que
levava à antiga senzala, à horta, ao jardim. Os pátios eram
calçados com pedras grandes, lisas, arredondadas. E no jardim havia
camélias, roseiras, dálias, resedás, cravos, morangos e um pé
antiquíssimo de jasmim do imperador, que Guimarães Rosa declarou
ser, de todas, a flor mais querida pelo seu perfume de pêssego. O
primeiro pátio dos escravos teve um uso inesperado que o tornou
famoso. Veio um circo para a cidade que interrompeu o tédio da vida.
Foi um rebuliço na vida da cidade. O único assunto era o circo. Os
homens conversavam reservadamente nas barbearias e armazéns sobre as
trapezistas em roupas mínimas que faziam seus corações bater
descompassados. Nunca haviam visto coisa igual em suas vidas. E as
fantasias os enchiam de vida nova. Mas havia um artista sobre o qual
todos conversavam abertamente: um elefante. Os donos do circo,
temerosos de que o entusiasmo das pessoas que se aproximavam viesse a
perturbar o bicho e temendo por sua segurança, trataram de encontrar
um lugar onde ele pudesse estar seguro. Encontraram um único lugar:
o pátio dos escravos do sobrado do meu avô…
Rubem Alves, in O velho que acordou menino
Nenhum comentário:
Postar um comentário