segunda-feira, 18 de outubro de 2021

O sobrado

O sobrado dominava a praça, que era um bosque cheio de árvores, ipês, tipuanas e palmeiras, muitas delas plantadas pelo doutor Jorge. Na frente passava o bonde que percorria a rua principal, tão comprida que diziam que Lavras era cidade de uma rua só. Ao lado ficava uma igreja colonial, velhíssima, onde moravam andorinhas e morcegos que faziam suas revoadas ao entardecer e no início da noite.
No sobrado tudo era grande. As portas, grandes na largura, grandes na altura, grandes na grossura. Dir-se-ia que eram portas para deixar passar gigantes. Os corredores, largos demais, longos demais. E o pé direito das paredes era muito alto.
O sobrado tinha cinco portas. As duas portas da esquerda eram portas da barbearia. As duas portas da direita eram portas do armazém. A porta do meio, porta de gigantes, de duas bandeiras, era a porta de entrada. Ali o ar tinha o perfume dos perfumes da barbearia. A qualquer hora. Passada a porta de entrada, caminhando-se pelo corredor, ao nos aproximarmos da escada, o cheiro de perfume era substituído pelo cheiro de mofo que vinha dos cômodos permanentemente fechados e úmidos. À esquerda estava a escada, um primeiro lance com onze degraus, um segundo lance com treze degraus, divididos por um patamar. Terminada a escada, à direita, estava a sala de visitas. Duas portas no mesmo batente. A porta exterior, de madeira, era outra porta de gigantes. A segunda, interior, mais delicada, tinha caixilhos de alto a baixo com vidros coloridos importados, vermelhos, azuis, amarelos, verdes. O teto barroco, abaulado, era decorado com frisos dourados. No ângulo do fundo, o piano Pleyel e seus candelabros. Um conjunto de sofá e cadeiras de palhinha, produto artístico do artesanato local do século XIX. Consoles e mesas de mármore com jarras de cristal. Eu imaginava que o enorme e pesado espelho pendurado na parede dos fundos, sobre o sofá, pudesse cair sobre uma visita... Sempre vazia. Só eu dentro dela, olhando as coisas. O espaço provoca estranhas deformações. Sentia-me menor do que eu era. Nos grandes espaços os homens se apequenam. Como a Alice no País das Maravilhas: uma hora era ela tão grande que quase não cabia no quarto, outra hora ela era tão pequena que parecia um ratinho.
Mas eu sabia, por estórias que me contaram, que nos anos da riqueza aquela sala fora palco de muitas festas, as chamas das velas refletidas nos espelhos e nos cristais dos lustres. Se, do final da escada, se virasse para a esquerda, era de novo um corredor largo que conduzia ao ventre da casa. Caminho interditado às visitas de cerimônia. Não deveriam passar da sala de visitas, lugar das delicadezas, das cerimônias, do cuidado com as palavras, do café com sequilhos. A sala de visitas era imperativa. O arranjo dos móveis não dava lugar a dúvidas. Os visitantes deveriam assentar-se nos lugares designados. Ali não havia lugar para imprevistos. Tudo estava em ordem. Cada coisa no seu lugar.
À esquerda do corredor ficava o Quarto do Mistério. Ao final do corredor a sala de jantar, com oito janelas envidraçadas dando para o poente. Vi muitos pores de sol através delas. As janelas eram emolduradas por uma trepadeira onde, à noite, os gambás passeavam com seus olhos brilhantes, olhando curiosos e sem medo as pessoas reunidas na sala. A pintura das paredes, a óleo, de um verde suave, era adornada, bem no alto, por uma franja de miniaturas, obra de um artista, cenas marinhas e bucólicas. Num lugar do assoalho, próximo a uma coluna de madeira, havia uma argola de ferro pregada às tábuas largas cuja função nunca me foi explicada. Talvez ninguém soubesse. Minhas fantasias infantis me faziam imaginar que ali, em outros tempos, se amarravam escravos. À direita, um console de mármore com uma bilha de barro cheia d’água e copos. Um relógio carrilhão estava pendurado na parede, olhando para o poente. Ao lado do relógio uma porta que levava ao quarto de badulaques. O quarto de badulaques era um quarto do mistério ainda aberto ao público. Ao centro, uma grande mesa onde, em tempos de riqueza e de família grande, se serviam as refeições. Para se ir de um quarto a outro passava-se por dentro dos intermediários. Havia neles um aveludado e discreto perfume de urina, resultado de milhares de noites de urinóis cheios que eram esvaziados pelas manhãs em procissão, cada pessoa carregando discretamente o seu, na direção do banheiro, tarefa humilde que, em outros tempos, fora realizada pelas escravas. Fui testemunha de algumas colisões de urinóis sem grandes consequências, a não ser o susto e o barulho metálico dos penicos. Por que, em vez dos urinóis, as pessoas não se serviam do banheiro, eis aí uma pergunta para a qual nunca obtive resposta. Acho que se tratava de um hábito dos tempos em que a “casinha” ficava do lado de fora da casa e dava medo ir lá fora durante a noite. O dito odor era tão natural que nem me dava conta de que era cheiro de urina. Só me apercebi disso muitos anos depois. Não era ruim. Ele era parte do espaço, ao lado das cadeiras, das camas, dos criados-mudos, dos quadros.
Da sala de jantar saía um outro corredor, na direção da cozinha e do banheiro. Nele havia três quartos. No primeiro dormia um tio. O segundo era o de hóspedes, onde ficávamos eu e minha mãe. O último, na verdade, não era um quarto. Era usado como uma copa. Lá ficavam o grande filtro, a máquina de fazer sorvete, abandonada, mesa e cadeiras onde se faziam as refeições, e um enorme armário branco, onde, na parte superior, se guardava um jogo de porcelana inglesa que nunca foi usado e, na parte inferior, se guardavam bananas-prata. O cheiro das bananas-prata, amarelas, pintadas de preto, enchia o corredor de alegria. Até hoje as bananas-prata são as minhas preferidas. Uma banana-prata bem madura com um copo de leite gelado é um manjar digno dos deuses...
Depois vinha a cozinha, com um enorme fogão de ferro. Finalmente o banheiro, com uma privada artisticamente decorada, importada da Inglaterra, e duas banheiras. A banheira dos homens era normal, com os tradicionais pés de galinha sobre bolas. A banheira das mulheres, nunca vi igual. Ela se parecia com uma poltrona grande, muito grande, de encosto reclinado e assento afundado. As pernas de quem tomava banho ficavam pendentes, do lado de fora. Não sei as razões por que as mulheres ganharam banheira tão estranha. Talvez fosse para impedir que algum homem tomasse banho nela. O importante era que os homens tomassem banho numa banheira e as mulheres tomassem banho na outra banheira. Seguro morreu de velho. Todo cuidado é pouco.
Depois do banheiro, ao final do corredor, havia a escada escura e estreita, lembro-me do cheiro de mofo, que levava à antiga senzala, à horta, ao jardim. Os pátios eram calçados com pedras grandes, lisas, arredondadas. E no jardim havia camélias, roseiras, dálias, resedás, cravos, morangos e um pé antiquíssimo de jasmim do imperador, que Guimarães Rosa declarou ser, de todas, a flor mais querida pelo seu perfume de pêssego. O primeiro pátio dos escravos teve um uso inesperado que o tornou famoso. Veio um circo para a cidade que interrompeu o tédio da vida. Foi um rebuliço na vida da cidade. O único assunto era o circo. Os homens conversavam reservadamente nas barbearias e armazéns sobre as trapezistas em roupas mínimas que faziam seus corações bater descompassados. Nunca haviam visto coisa igual em suas vidas. E as fantasias os enchiam de vida nova. Mas havia um artista sobre o qual todos conversavam abertamente: um elefante. Os donos do circo, temerosos de que o entusiasmo das pessoas que se aproximavam viesse a perturbar o bicho e temendo por sua segurança, trataram de encontrar um lugar onde ele pudesse estar seguro. Encontraram um único lugar: o pátio dos escravos do sobrado do meu avô…

Rubem Alves, in O velho que acordou menino

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