Em meados do século XIX, o naturalista
americano Ralph Waldo Emerson escreveu em seu ensaio Natureza: “O
homem é um deus em ruínas.” Quando nossos antepassados
contemplaram pela primeira vez a dimensão do divino – e isso pode
ter ocorrido ainda antes do Homo sapiens, com os neandertais –,
causaram uma ruptura entre a condição humana e o eterno. Desde
então, temos consciência de nossa mortalidade, e o sofrimento que
vem da perda de entes queridos tem sido nossa bênção e nossa
maldição.
Em 1818, Mary Shelley publicou a primeira
edição de seu romance gótico Frankenstein, ou o Prometeu Moderno.
Com apenas 21 anos, jamais poderia imaginar que sua obra se tornaria
uma das mais famosas na história da literatura. Desde a sua
publicação, já são mais de trezentas edições do romance e ao
menos noventa filmes inspirados por ele, fora inúmeros livros e
ensaios acadêmicos. A origem do livro é quase legendária.
Numa noite tempestuosa de verão, em
junho de 1816, Mary Shelley, seu marido Percy Bysshe Shelley, um
brilhante escritor com ideias avançadas para o seu tempo, e o seu
amigo e grande poeta Lord Byron estavam numa mansão às margens do
Lago Genebra, na Suíça, impressionados com a força da Natureza.
Para passar o tempo enquanto os raios caíam, pensaram numa
competição: venceria quem escrevesse a história mais macabra.
A morte parecia perseguir a jovem Mary
Shelley. Em março de 1815, perdeu a filha apenas algumas semanas
após o parto. A perda do bebê traumatizou Mary profundamente, que
sofria com visões do bebê morto. Num sonho, viu a filha ressuscitar
após ser massageada vigorosamente em frente ao fogo da lareira. No
romance Frankenstein, a massagem é substituída por correntes
elétricas passando pelo corpo. Shelley havia lido sobre os
experimentos de Luigi Galvani e Alessandro Volta, explorando a
conexão entre a eletricidade e a contração muscular. Usando a
ciência de ponta de sua época, escreveu um conto caucionário, que
explora os perigos da relação entre a ciência e o poder. (O leitor
interessado pode consultar meu livro Criação imperfeita, onde, nos
capítulos 37 e 38, conto essa história em detalhe.)
A ciência pode ir longe demais na busca
pelo conhecimento? Eis o que Shelley escreveu no prefácio da
terceira edição de sua obra, publicada em outubro de 1831: Vi o
pálido estudante das artes insólitas ajoelhado perante a coisa que
havia criado.
Vi o fantasma hediondo deitado e, após a
ação de algum engenho poderoso, mostrar sinais de vida, movendo-se
com dificuldade, semivivo. Minha história tem que aterrorizar o
leitor, pois é supremamente terrível o efeito de qualquer atividade
humana que tente zombar do grandioso mecanismo do Criador.
O sucesso apavoraria o artista, que
abandonaria sua criação medonha, esperando que, sozinha, a pequena
centelha de vida que lhe dera se apagaria. O cientista foi longe
demais em sua invenção, “zombando” do poder divino ao tentar
recriar a vida: o homem tentando ser deus. Ao escrever a obra,
Shelley parece buscar uma espécie de pró-cura, a cura emocional
através da busca, meditando sobre a morte da filha, abandonando a
esperança de trazê-la de volta à vida através de alguma
intervenção científica. A mensagem é clara: a morte tem que ser
aceita como sendo final; a criatura ressuscitada artificialmente não
é humana, habitando uma estranha realidade entre o viver e o não
viver, ao mesmo tempo poderosa como um deus e profundamente
solitária, abandonada pelo seu criador. (E não é esta a condição
humana?)
Avançando duzentos anos, a ciência de
ponta da nossa época combina a eletricidade, a tecnologia digital e
a genética. Muito mudou desde Galvani e Volta. Mas não a esperança
de muitos de que a ciência poderá, um dia, driblar a morte, criando
uma espécie de imortalidade, transcendendo a fragilidade do corpo.
Os transumanistas – pessoas que buscam criar um ciborgue, um
híbrido entre o humano e as tecnologias – acreditam que isso
ocorrerá em breve.
Possivelmente, por meio da clonagem
genética, ou numa transferência da informação que existe em seu
cérebro – capturada no arranjo de seus neurônios e de suas
conexões sinápticas – para uma máquina capaz de “reacendê-lo”,
por assim dizer, tornando você, sua essência, numa espécie de
criatura digital que poderá passar de máquina em máquina como um
programa de computador: a versão digital da Ressurreição! O
inventor e autor Ray Kurzweil prevê a chegada da “Singularidade –
o dia em que máquinas inteligentes sobrepujarão os humanos – em
torno de 2040. Para tal, Kurzweil extrapola a taxa de crescimento
atual da capacidade de processamento de dados em computadores,
concluindo que, em breve, computadores poderão simular o cérebro
humano.
Com isso, prevê a emergência de uma
consciência digital, a chegada da Singularidade. A extrapolação de
Kurzweil é bem superficial, dado que não podemos prever o avanço
da tecnologia como se fosse uma lei da Natureza. Não temos, também,
a menor ideia do que significa transferir a informação armazenada
no cérebro de uma pessoa para uma máquina, ou se esse tipo de
operação faz sentido. Pouco sabemos sobre o consciente humano, ou
se pode ser decodificado como informação. Ainda bem. Mary Shelley
escreveu sobre os perigos de estender a ciência a domínios em que
temos pouco, ou nenhum, controle de seus produtos.
Victor Frankenstein arrependeu-se do que
criou, e o livro termina tragicamente. A pesquisa científica é
irreversível. Ideias não podem ser apagadas por completo, mesmo
quando têm consequências éticas terríveis. Alguém, ou algum
grupo, irá explorá-las para seu próprio benefício, mesmo se em
detrimento de outros. Assim é a natureza humana. Talvez o melhor
modo de celebrar o bicentenário de Frankenstein seja criando uma
organização internacional com a missão de garantir salvaguardas
que controlem esse tipo de pesquisa, incluindo a modificação
intencional do genoma humano. Por exemplo, a nova tecnologia
conhecida como CRISPR, capaz de editar a ação de genes específicos.
Como muitas inovações científicas, essa tecnologia tem enorme
potencial, tanto para o bem (na cura de doenças genéticas) como
para o mal (na criação de animais e mesmo de semi-humanos com
características diversas ou de bebês por design).
Em nível mais extremo, em princípio ao
menos, CRISPR é capaz de modificar a espécie humana como um todo,
já que a modificação no genoma passaria para a prole. Seria a
vingança final de Frankenstein, a espécie humana criando seu
próprio fim. Considerando, também, a possibilidade e a ameaça da
inteligência artificial à nossa existência, como vimos no ensaio
“O futuro das mentes e das máquinas que pensam”, não é à toa
que a obra de Mary Shelley continua sendo tão influente. Todos
deveriam ler e assimilar suas lições. Lembre-se do que aconteceu
com Prometeu.
Marcelo Gleiser, in O caldeirão azul
Estou utilizando o aplicativo espião no celular da minha filha para conseguir ver tudo que ela acessa ou com quem ela conversa. É muito bom fiquei impressionado como é simples e fácil de usar recomendo muito usarem. https://brunoespiao.com.br/espiao-de-chamadas
ResponderExcluir