quinta-feira, 28 de outubro de 2021

O homem que quer ser Deus: Frankenstein aos 200 anos

Em meados do século XIX, o naturalista americano Ralph Waldo Emerson escreveu em seu ensaio Natureza: “O homem é um deus em ruínas.” Quando nossos antepassados contemplaram pela primeira vez a dimensão do divino – e isso pode ter ocorrido ainda antes do Homo sapiens, com os neandertais –, causaram uma ruptura entre a condição humana e o eterno. Desde então, temos consciência de nossa mortalidade, e o sofrimento que vem da perda de entes queridos tem sido nossa bênção e nossa maldição.
Em 1818, Mary Shelley publicou a primeira edição de seu romance gótico Frankenstein, ou o Prometeu Moderno. Com apenas 21 anos, jamais poderia imaginar que sua obra se tornaria uma das mais famosas na história da literatura. Desde a sua publicação, já são mais de trezentas edições do romance e ao menos noventa filmes inspirados por ele, fora inúmeros livros e ensaios acadêmicos. A origem do livro é quase legendária.
Numa noite tempestuosa de verão, em junho de 1816, Mary Shelley, seu marido Percy Bysshe Shelley, um brilhante escritor com ideias avançadas para o seu tempo, e o seu amigo e grande poeta Lord Byron estavam numa mansão às margens do Lago Genebra, na Suíça, impressionados com a força da Natureza. Para passar o tempo enquanto os raios caíam, pensaram numa competição: venceria quem escrevesse a história mais macabra.
A morte parecia perseguir a jovem Mary Shelley. Em março de 1815, perdeu a filha apenas algumas semanas após o parto. A perda do bebê traumatizou Mary profundamente, que sofria com visões do bebê morto. Num sonho, viu a filha ressuscitar após ser massageada vigorosamente em frente ao fogo da lareira. No romance Frankenstein, a massagem é substituída por correntes elétricas passando pelo corpo. Shelley havia lido sobre os experimentos de Luigi Galvani e Alessandro Volta, explorando a conexão entre a eletricidade e a contração muscular. Usando a ciência de ponta de sua época, escreveu um conto caucionário, que explora os perigos da relação entre a ciência e o poder. (O leitor interessado pode consultar meu livro Criação imperfeita, onde, nos capítulos 37 e 38, conto essa história em detalhe.)
A ciência pode ir longe demais na busca pelo conhecimento? Eis o que Shelley escreveu no prefácio da terceira edição de sua obra, publicada em outubro de 1831: Vi o pálido estudante das artes insólitas ajoelhado perante a coisa que havia criado.
Vi o fantasma hediondo deitado e, após a ação de algum engenho poderoso, mostrar sinais de vida, movendo-se com dificuldade, semivivo. Minha história tem que aterrorizar o leitor, pois é supremamente terrível o efeito de qualquer atividade humana que tente zombar do grandioso mecanismo do Criador.
O sucesso apavoraria o artista, que abandonaria sua criação medonha, esperando que, sozinha, a pequena centelha de vida que lhe dera se apagaria. O cientista foi longe demais em sua invenção, “zombando” do poder divino ao tentar recriar a vida: o homem tentando ser deus. Ao escrever a obra, Shelley parece buscar uma espécie de pró-cura, a cura emocional através da busca, meditando sobre a morte da filha, abandonando a esperança de trazê-la de volta à vida através de alguma intervenção científica. A mensagem é clara: a morte tem que ser aceita como sendo final; a criatura ressuscitada artificialmente não é humana, habitando uma estranha realidade entre o viver e o não viver, ao mesmo tempo poderosa como um deus e profundamente solitária, abandonada pelo seu criador. (E não é esta a condição humana?)
Avançando duzentos anos, a ciência de ponta da nossa época combina a eletricidade, a tecnologia digital e a genética. Muito mudou desde Galvani e Volta. Mas não a esperança de muitos de que a ciência poderá, um dia, driblar a morte, criando uma espécie de imortalidade, transcendendo a fragilidade do corpo. Os transumanistas – pessoas que buscam criar um ciborgue, um híbrido entre o humano e as tecnologias – acreditam que isso ocorrerá em breve.
Possivelmente, por meio da clonagem genética, ou numa transferência da informação que existe em seu cérebro – capturada no arranjo de seus neurônios e de suas conexões sinápticas – para uma máquina capaz de “reacendê-lo”, por assim dizer, tornando você, sua essência, numa espécie de criatura digital que poderá passar de máquina em máquina como um programa de computador: a versão digital da Ressurreição! O inventor e autor Ray Kurzweil prevê a chegada da “Singularidade – o dia em que máquinas inteligentes sobrepujarão os humanos – em torno de 2040. Para tal, Kurzweil extrapola a taxa de crescimento atual da capacidade de processamento de dados em computadores, concluindo que, em breve, computadores poderão simular o cérebro humano.
Com isso, prevê a emergência de uma consciência digital, a chegada da Singularidade. A extrapolação de Kurzweil é bem superficial, dado que não podemos prever o avanço da tecnologia como se fosse uma lei da Natureza. Não temos, também, a menor ideia do que significa transferir a informação armazenada no cérebro de uma pessoa para uma máquina, ou se esse tipo de operação faz sentido. Pouco sabemos sobre o consciente humano, ou se pode ser decodificado como informação. Ainda bem. Mary Shelley escreveu sobre os perigos de estender a ciência a domínios em que temos pouco, ou nenhum, controle de seus produtos.
Victor Frankenstein arrependeu-se do que criou, e o livro termina tragicamente. A pesquisa científica é irreversível. Ideias não podem ser apagadas por completo, mesmo quando têm consequências éticas terríveis. Alguém, ou algum grupo, irá explorá-las para seu próprio benefício, mesmo se em detrimento de outros. Assim é a natureza humana. Talvez o melhor modo de celebrar o bicentenário de Frankenstein seja criando uma organização internacional com a missão de garantir salvaguardas que controlem esse tipo de pesquisa, incluindo a modificação intencional do genoma humano. Por exemplo, a nova tecnologia conhecida como CRISPR, capaz de editar a ação de genes específicos. Como muitas inovações científicas, essa tecnologia tem enorme potencial, tanto para o bem (na cura de doenças genéticas) como para o mal (na criação de animais e mesmo de semi-humanos com características diversas ou de bebês por design).
Em nível mais extremo, em princípio ao menos, CRISPR é capaz de modificar a espécie humana como um todo, já que a modificação no genoma passaria para a prole. Seria a vingança final de Frankenstein, a espécie humana criando seu próprio fim. Considerando, também, a possibilidade e a ameaça da inteligência artificial à nossa existência, como vimos no ensaio “O futuro das mentes e das máquinas que pensam”, não é à toa que a obra de Mary Shelley continua sendo tão influente. Todos deveriam ler e assimilar suas lições. Lembre-se do que aconteceu com Prometeu.

Marcelo Gleiser, in O caldeirão azul

Um comentário:

  1. Estou utilizando o aplicativo espião no celular da minha filha para conseguir ver tudo que ela acessa ou com quem ela conversa. É muito bom fiquei impressionado como é simples e fácil de usar recomendo muito usarem. https://brunoespiao.com.br/espiao-de-chamadas

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