Aos 40 anos, em algum ponto dos meses
seguintes ao seu divórcio, Francisco Marcelino identificou um
sentimento pela primeira vez.
— De quem é esse sentimento? —
perguntou espantado para o analista.
— É seu esse sentimento — disse o
analista.
Marcelino ficou pensativo.
— Não, sério.
— Por que você acha que eu não estou
falando sério?
Marcelino ignorou a pergunta.
— Isso é um negócio que eu estou
sentindo?
— É, né.
Marcelino já tinha sentido muitas
coisas, sabia disso. Era tão emotivo quanto qualquer outro. Sua
ex-mulher até o tinha acusado de viver alternando perpetuamente
entre estados de raiva, tristeza, ciúme, paranóia e otimismo louco.
Mas era a primeira vez que flagrava um sentimento em si próprio no
mesmo momento em que o estava sentindo.
— Só pra confirmar. Não é você que
está sentindo isso? — perguntou para o analista.
— Não, é você.
Que coisa bizarra.
Francisco Marcelino achava que isso não
era só uma conquista da análise. Depois do divórcio tinha visto
dezenas de vídeos sobre sentimentos, tinha lido livros sobre
sentimentos, tinha tentado entrar em contato com a sua sombra fazendo
caretas na frente de um espelho, e um monte de bobajadas do tipo.
Imaginava que isso que estava acontecendo
agora com ele, conseguir saber o que estava sentindo, tinha sido
causado por um esforço progressivo de autoconsciência.
— Como você chamaria isso que você
está sentindo? — perguntou o analista.
Marcelino pensou bastante.
— Espanto?
— Ok, mas isso é o que você está
sentindo por conseguir identificar um sentimento dentro de si. Mas
esse sentimento dentro de si, que veio antes do espanto. Como é?
Marcelino realmente tentou descobrir.
— Não sei. Putz, já não estou
sentindo mais nada.
— Nem frustração por não estar
sentindo mais nada?
— Frustração? Estou? Não sei!
Marcelino saiu do consultório
visivelmente frustrado.
Passou vários dias se perguntando a cada
momento, “estou sentindo alguma coisa agora? se sim, o que é?” E
às vezes vinha uma resposta, “sim, ué, a garoa caindo na minha
cabeça”, ou algo um pouco menos evidente, “estou cansado”, ou
“estou nervoso, mas por que estou nervoso? ah sim, é por causa do
dentista hoje de noite”. Até que ficou tão bom nisso que começou
a falar em voz alta o que estava sentindo, por exemplo dizendo
enquanto ria, “estou achando graça!, haha!, mas a sensação de
graça está passando rapidamente!”, ou aquela vez que chorou vendo
um filme de eutanásia no cinema e disse enquanto chorava, “estou
triste! estou muito triste!”, completando logo em seguida, “mas
um pouco feliz por conseguir identificar que eu estou triste! e agora
um pouco envergonhado por estar falando isso no cinema, na frente de
todo mundo, com essa mulher se virando na cadeira pra olhar pra minha
cara”.
As pessoas o olhavam espantadas. Como é
que aquele homem sabia o que estava sentindo? Era uma farsa? Ele
estava nomeando sentimentos ao acaso? Mas o estranho é que as
emoções que ele nomeava combinavam com a expressão facial dele.
As bizarrices não pararam aí. Uma tarde
Francisco Marcelino andava na rua quando começou a ganhar
consciência de uma voz dizendo coisas, “amanhã tenho que ir no
contador” e “talvez o melhor jeito de ir no contador seja pegar o
metrô e descer na estação Praça da Árvore”.
Diminuiu o passo e olhou em volta para
descobrir quem tinha dito aquilo. Mas não tinha ninguém por perto.
Além disso, era ele mesmo que ia ter que ir no contador no dia
seguinte. “Será que fui eu que pensei isso?”, pensou, e logo em
seguida concluiu estarrecido que estava ouvindo os seus próprios
pensamentos.
Seria possível? Tinha virado um telepata
de si mesmo? Marcelino ficou parado na esquina para descobrir o que
estava pensando naquele momento. Ouviu dentro da sua cabeça: “Acho
que vou passar na padaria comprar iogurte com whey”. Foi quase como
se alguém sussurrasse essas palavras no seu ouvido. Sorriu,
felicíssimo, e recomeçou a andar, sabendo agora aonde estava indo,
e por que estava fazendo isso.
O desabrochar desse grande poder psíquico
o deixou inebriado. No trabalho, virou para um amigo e disse:
— Vou pensar num número de um a dez.
— Ok — disse o amigo.
Francisco Marcelino pensou num número.
— Agora me pergunta que número eu
pensei — disse Marcelino.
— Que número você pensou?
— Oito!
O colega quase caiu da cadeira.
— Foi sorte. Faz de novo.
Marcelino repetiu várias vezes a
experiência para todos os colegas verem. Acertou sempre.
— Mas você ouve o que você está
pensando assim, tipo uma voz na sua cabeça?
— É como um rádio — Marcelino
tentou explicar. — Acho que todo mundo consegue ouvir o que está
pensando, se sintonizar direito.
Todos ficaram tentando ouvir os próprios
pensamentos.
— Cara, só estou ouvindo um zumbido —
disse um.
— Acho que fiquei com dor de cabeça —
disse outro.
A fama de Francisco Marcelino se espalhou
graças aos vídeos que gravava adivinhando números e cartas em que
ele mesmo estava pensando, e em um ano começou a aparecer na tevê
com o nome de Dr. Mentalis, o Telepata de Si Mesmo.
No programa de entrevistas Freddy Freddy
o apresentador Freddy Freddy perguntou para o Dr. Mentalis o que o
famoso telepata estava pensando naquele momento.
Uma música dramática começou a tocar.
O Dr. Mentalis, massageando as têmporas,
muito concentrado:
— Não estou conseguindo ouvir… Um
momento…
— Opa opa! — disse Freddy Freddy. —
Será que o Dr. Mentalis vai falhar? O que vocês acham, pessoal?
O pessoal gritou NÃÃÃÃÃO.
— Eu vou conseguir, Freddy Freddy! Me
dá só uns segundos…
— Você tem vinte segundos, Dr.
Mentalis!
No estúdio começou a tocar um som alto
e nervoso de tique-taque enquanto uma contagem regressiva aparecia no
canto da tela.
Quando faltavam dois segundos, o Dr.
Mentalis sorriu sabido.
— Consigo ouvir agora, Freddy Freddy!
— O que você está pensando, Dr.
Mentalis?
— Estou pensando que… Espera… Sim,
é isso mesmo… Estou pensando que saindo daqui vou tentar passar
naquele restaurante húngaro aqui perto… Pelo menos eu acho que é
aqui perto…
O público aplaudiu assombrado.
— Era isso mesmo que você estava
pensando, Dr. Mentalis?
— Era!
O Dr. Mentalis fazia shows em teatros, em
cruzeiros, nos bar mitzvas das famílias ricas. Era especialmente
dramático quando ele tirava o turbante para ter acesso às suas
poderosas ondas cerebrais.
Era um favorito das crianças, que o
imitavam. Um irmão mais novo, por exemplo, começava a berrar:
— Sou o Dr. Mentalis!
— Ah é, que número você está
pensando? — perguntava o irmão mais velho.
— Cinco!
— Você está chutando!
— Não estou!
Mas todo mundo podia ver na cara do
moleque que ele estava chutando um número qualquer.
Quando sua carreira chegou no auge o Dr.
Mentalis quis realizar o seu maior desafio: fazer algo que nenhum
mentalista jamais havia conseguido fazer. Quis mostrar que os seus
poderes mentais eram tamanhos que ele conseguiria prestar atenção
no que uma mulher estava falando.
Para se preparar o Dr. Mentalis ficou
dois meses numa fazenda na Islândia tentando prestar atenção no
que mulheres falavam, e lendo contos femininos.
Tem um documentário islandês famoso em
que o Dr. Mentalis aparece tentando prestar atenção numa mulher em
um celeiro, e logo na primeira frase dela ele grita:
— Não consigo! É inútil! — e
começa a quebrar uma cadeira contra a parede.
Daí o documentário segue o Dr. Mentalis
para fora do celeiro até que ele vira uma silhueta solitária na
tundra.
— Aaaah! Estou profundamente frustrado!
— a silhueta do Dr. Mentalis berra ao longe.
Mas ele perseverou, ou não se chamasse
Dr. Mentalis.
No seu famoso show no estádio do
Morumbi, ele colocou uma assistente bonita, a Artemísia, falando sem
parar durante um minuto inteiro. Daí tirou o turbante e jogou no
outro lado do palco, começou a massagear as têmporas no seu gesto
característico, e disse:
— Ela falou que na sexta, acho que foi
na sexta, ela ia na chácara da tia dela, irmã da mãe dela, a irmã
mais nova da mãe dela, não a mais velha que está brigada com a
família… Ela ia mas não foi por algum motivo… Espera, foi
porque desde criança essa tia faz ela se sentir mal… Porque é
fofoqueira ou algo assim… Nessa parte eu viajei… Mas ela não foi
na chácara, e no lugar disso saiu com uma amiga dela chamada Talita,
que está chateada porque não vai poder viajar pra Cancun, e elas
beberam frozen margaritas e falaram de um tal de Tiaguinho, que é
super convencido.
Ninguém sabia se era isso que a
Artemísia tinha falado mesmo, porque ninguém no estádio tinha
prestado atenção. Mas o Dr. Mentalis perguntou para ela se era isso
mesmo que ela tinha falado.
— Mais ou menos — respondeu
Artemísia, e todos no estádio lotado começaram a aplaudir o
triunfo do Dr. Mentalis, que satisfeito da vida colocou de volta o
turbante e começou a cavalgar um tigre pelo palco com os braços
cruzados no peito ao som de “Assim Falava Zaratustra”.
Essa imagem do Dr. Mentalis cavalgando um
tigre foi capa da revista Time com o título “O PODER DA MENTE –
Como um brasileiro consegue saber o que está sentindo, ler os
próprios pensamentos e prestar atenção em mulheres”.
Nessa época ele deu uma entrevista
famosa para a TV.
ENTREVISTADORA: Você se tornou famoso
por três truques: saber o que está sentindo, saber o que está
pensando, e conseguir prestar atenção parcial em mulheres. O que
esses três truques têm em comum?
DR. MENTALIS: Estar presente no momento.
Graças a muita meditação, consigo ficar levemente atento ao
momento presente. Isso permite que eu faça truques de palco, mas
também permite que eu faça outras coisas na vida real que seriam
consideradas extraordinárias pela massa ignara.
ENTREVISTADORA: Pode dar um exemplo?
Mas aqui o Dr. Mentalis se distraiu e a
pergunta teve que ser repetida por um entrevistador homem.
ENTREVISTADOR: Pode dar um exemplo?
DR. MENTALIS: Por exemplo, quando estou
tendo relações sexuais, consigo pensar na mulher com quem estou
tendo a relação.
ENTREVISTADOR: O tempo todo?
DR. MENTALIS: Bom, claro que não o tempo
todo, mas às vezes, durante a relação, percebo que estou com esta
mulher e não aquela. E presto atenção nela durante alguns
momentos.
ENTREVISTADOR: Com todo respeito, é
difícil acreditar que isso esteja dentro da capacidade de um ser
humano.
DR. MENTALIS: Mas é inteiramente
possível e já fiz isso algumas vezes.
Não se sabe exatamente o que causou o
desaparecimento dos seus poderes psíquicos – fala-se de uma febre,
do abuso pecuniário de dons sobrenaturais, de alcoolismo –, mas o
fato é que a derrocada chegou de um momento para o outro. Um dia o
Dr. Mentalis subiu no palco e se preparou para fazer o seu truque
tradicional de descobrir o número em que ele estava pensando.
— Vou escrever um número de um a cem
neste papel, e vou olhar este papel e transmitir o número para a
minha mente.
O Dr. Mentalis escreveu o número 41 no
papel, que foi projetado num telão.
— Que loucura — disse o Freddy Freddy
(foi no programa do Freddy Freddy). — E agora?
— Agora vou olhar pro papel e ao mesmo
tempo transmitir o número pra minha mente. Preciso de toda
concentração!
— Boa sorte, Dr. Mentalis!
O Dr. Mentalis ficou olhando fixo para o
papel onde estava escrito o número 41.
— Estou ficando melancólico! —
gritou o Freddy Freddy, que na verdade estava ficando nervoso, mas ao
contrário do Dr. Mentalis não era capaz de saber como estava se
sentindo. — Que número é, Dr. Mentalis?
E o Dr. Mentalis, olhando para o número
escrito no papel:
— Não consigo captar… Um momento…
— Algum problema, Dr. Mentalis?
O Dr. Mentalis em silêncio.
— Quer mais um minuto, Dr. Mentalis?
Podemos começar a contagem regressiva?
— Espera… Não consigo… Só um
segundo…
O programa começou a contagem regressiva
de um minuto.
O Dr. Mentalis olhando o número escrito
no papel.
— Talvez… Espere… Sim, acho que…
E por fim, num tom de dúvida:
— Doze?
Som de decepção do público.
— Não, Dr. Mentalis! Infelizmente é
41!
— Não pode ser… Vi claramente o
número 12 na minha mente!
— Confira no papel que o senhor tem
aberto na mão, Dr. Mentalis!
E o Dr. Mentalis olhou derrotado para o
papel, para o qual na verdade nunca tinha deixado de olhar.
Foi a última apresentação do Francisco
Marcelino como Dr. Mentalis. O turbante foi para o fundo do armário,
junto de um alaúde empoeirado e uma bola de futebol murcha.
Anos depois, sob efeito de muita sambuca,
Marcelino tirou do armário aquele turbante duro e coberto de fungos
e o colocou na cabeça durante uns minutos, se olhando no espelho e
ficando triste, mas sem saber que estava se sentindo triste (pensou
que achou engraçado).
Hoje Francisco Marcelino anda pelas
calçadas rachadas do seu bairro, um homem comum que de vez em quando
se pergunta vagamente, muito vagamente, o que diabos estará pensando
ou sentindo.
Alexandre Soares Silva, in O Homem que Lia os Seus Próprios Pensamentos
Nenhum comentário:
Postar um comentário