terça-feira, 12 de outubro de 2021

O homem que lia os seus próprios pensamentos

Aos 40 anos, em algum ponto dos meses seguintes ao seu divórcio, Francisco Marcelino identificou um sentimento pela primeira vez.
De quem é esse sentimento? — perguntou espantado para o analista.
É seu esse sentimento — disse o analista.
Marcelino ficou pensativo.
Não, sério.
Por que você acha que eu não estou falando sério?
Marcelino ignorou a pergunta.
Isso é um negócio que eu estou sentindo?
É, né.
Marcelino já tinha sentido muitas coisas, sabia disso. Era tão emotivo quanto qualquer outro. Sua ex-mulher até o tinha acusado de viver alternando perpetuamente entre estados de raiva, tristeza, ciúme, paranóia e otimismo louco. Mas era a primeira vez que flagrava um sentimento em si próprio no mesmo momento em que o estava sentindo.
Só pra confirmar. Não é você que está sentindo isso? — perguntou para o analista.
Não, é você.
Que coisa bizarra.
Francisco Marcelino achava que isso não era só uma conquista da análise. Depois do divórcio tinha visto dezenas de vídeos sobre sentimentos, tinha lido livros sobre sentimentos, tinha tentado entrar em contato com a sua sombra fazendo caretas na frente de um espelho, e um monte de bobajadas do tipo.
Imaginava que isso que estava acontecendo agora com ele, conseguir saber o que estava sentindo, tinha sido causado por um esforço progressivo de autoconsciência.
Como você chamaria isso que você está sentindo? — perguntou o analista.
Marcelino pensou bastante.
Espanto?
Ok, mas isso é o que você está sentindo por conseguir identificar um sentimento dentro de si. Mas esse sentimento dentro de si, que veio antes do espanto. Como é?
Marcelino realmente tentou descobrir.
Não sei. Putz, já não estou sentindo mais nada.
Nem frustração por não estar sentindo mais nada?
Frustração? Estou? Não sei!
Marcelino saiu do consultório visivelmente frustrado.
Passou vários dias se perguntando a cada momento, “estou sentindo alguma coisa agora? se sim, o que é?” E às vezes vinha uma resposta, “sim, ué, a garoa caindo na minha cabeça”, ou algo um pouco menos evidente, “estou cansado”, ou “estou nervoso, mas por que estou nervoso? ah sim, é por causa do dentista hoje de noite”. Até que ficou tão bom nisso que começou a falar em voz alta o que estava sentindo, por exemplo dizendo enquanto ria, “estou achando graça!, haha!, mas a sensação de graça está passando rapidamente!”, ou aquela vez que chorou vendo um filme de eutanásia no cinema e disse enquanto chorava, “estou triste! estou muito triste!”, completando logo em seguida, “mas um pouco feliz por conseguir identificar que eu estou triste! e agora um pouco envergonhado por estar falando isso no cinema, na frente de todo mundo, com essa mulher se virando na cadeira pra olhar pra minha cara”.
As pessoas o olhavam espantadas. Como é que aquele homem sabia o que estava sentindo? Era uma farsa? Ele estava nomeando sentimentos ao acaso? Mas o estranho é que as emoções que ele nomeava combinavam com a expressão facial dele.
As bizarrices não pararam aí. Uma tarde Francisco Marcelino andava na rua quando começou a ganhar consciência de uma voz dizendo coisas, “amanhã tenho que ir no contador” e “talvez o melhor jeito de ir no contador seja pegar o metrô e descer na estação Praça da Árvore”.
Diminuiu o passo e olhou em volta para descobrir quem tinha dito aquilo. Mas não tinha ninguém por perto. Além disso, era ele mesmo que ia ter que ir no contador no dia seguinte. “Será que fui eu que pensei isso?”, pensou, e logo em seguida concluiu estarrecido que estava ouvindo os seus próprios pensamentos.
Seria possível? Tinha virado um telepata de si mesmo? Marcelino ficou parado na esquina para descobrir o que estava pensando naquele momento. Ouviu dentro da sua cabeça: “Acho que vou passar na padaria comprar iogurte com whey”. Foi quase como se alguém sussurrasse essas palavras no seu ouvido. Sorriu, felicíssimo, e recomeçou a andar, sabendo agora aonde estava indo, e por que estava fazendo isso.
O desabrochar desse grande poder psíquico o deixou inebriado. No trabalho, virou para um amigo e disse:
Vou pensar num número de um a dez.
Ok — disse o amigo.
Francisco Marcelino pensou num número.
Agora me pergunta que número eu pensei — disse Marcelino.
Que número você pensou?
Oito!
O colega quase caiu da cadeira.
Foi sorte. Faz de novo.
Marcelino repetiu várias vezes a experiência para todos os colegas verem. Acertou sempre.
Mas você ouve o que você está pensando assim, tipo uma voz na sua cabeça?
É como um rádio — Marcelino tentou explicar. — Acho que todo mundo consegue ouvir o que está pensando, se sintonizar direito.
Todos ficaram tentando ouvir os próprios pensamentos.
Cara, só estou ouvindo um zumbido — disse um.
Acho que fiquei com dor de cabeça — disse outro.
A fama de Francisco Marcelino se espalhou graças aos vídeos que gravava adivinhando números e cartas em que ele mesmo estava pensando, e em um ano começou a aparecer na tevê com o nome de Dr. Mentalis, o Telepata de Si Mesmo.
No programa de entrevistas Freddy Freddy o apresentador Freddy Freddy perguntou para o Dr. Mentalis o que o famoso telepata estava pensando naquele momento.
Uma música dramática começou a tocar.
O Dr. Mentalis, massageando as têmporas, muito concentrado:
Não estou conseguindo ouvir… Um momento…
Opa opa! — disse Freddy Freddy. — Será que o Dr. Mentalis vai falhar? O que vocês acham, pessoal?
O pessoal gritou NÃÃÃÃÃO.
Eu vou conseguir, Freddy Freddy! Me dá só uns segundos…
Você tem vinte segundos, Dr. Mentalis!
No estúdio começou a tocar um som alto e nervoso de tique-taque enquanto uma contagem regressiva aparecia no canto da tela.
Quando faltavam dois segundos, o Dr. Mentalis sorriu sabido.
Consigo ouvir agora, Freddy Freddy!
O que você está pensando, Dr. Mentalis?
Estou pensando que… Espera… Sim, é isso mesmo… Estou pensando que saindo daqui vou tentar passar naquele restaurante húngaro aqui perto… Pelo menos eu acho que é aqui perto…
O público aplaudiu assombrado.
Era isso mesmo que você estava pensando, Dr. Mentalis?
Era!
O Dr. Mentalis fazia shows em teatros, em cruzeiros, nos bar mitzvas das famílias ricas. Era especialmente dramático quando ele tirava o turbante para ter acesso às suas poderosas ondas cerebrais.
Era um favorito das crianças, que o imitavam. Um irmão mais novo, por exemplo, começava a berrar:
Sou o Dr. Mentalis!
Ah é, que número você está pensando? — perguntava o irmão mais velho.
Cinco!
Você está chutando!
Não estou!
Mas todo mundo podia ver na cara do moleque que ele estava chutando um número qualquer.
Quando sua carreira chegou no auge o Dr. Mentalis quis realizar o seu maior desafio: fazer algo que nenhum mentalista jamais havia conseguido fazer. Quis mostrar que os seus poderes mentais eram tamanhos que ele conseguiria prestar atenção no que uma mulher estava falando.
Para se preparar o Dr. Mentalis ficou dois meses numa fazenda na Islândia tentando prestar atenção no que mulheres falavam, e lendo contos femininos.
Tem um documentário islandês famoso em que o Dr. Mentalis aparece tentando prestar atenção numa mulher em um celeiro, e logo na primeira frase dela ele grita:
Não consigo! É inútil! — e começa a quebrar uma cadeira contra a parede.
Daí o documentário segue o Dr. Mentalis para fora do celeiro até que ele vira uma silhueta solitária na tundra.
Aaaah! Estou profundamente frustrado! — a silhueta do Dr. Mentalis berra ao longe.
Mas ele perseverou, ou não se chamasse Dr. Mentalis.
No seu famoso show no estádio do Morumbi, ele colocou uma assistente bonita, a Artemísia, falando sem parar durante um minuto inteiro. Daí tirou o turbante e jogou no outro lado do palco, começou a massagear as têmporas no seu gesto característico, e disse:
Ela falou que na sexta, acho que foi na sexta, ela ia na chácara da tia dela, irmã da mãe dela, a irmã mais nova da mãe dela, não a mais velha que está brigada com a família… Ela ia mas não foi por algum motivo… Espera, foi porque desde criança essa tia faz ela se sentir mal… Porque é fofoqueira ou algo assim… Nessa parte eu viajei… Mas ela não foi na chácara, e no lugar disso saiu com uma amiga dela chamada Talita, que está chateada porque não vai poder viajar pra Cancun, e elas beberam frozen margaritas e falaram de um tal de Tiaguinho, que é super convencido.
Ninguém sabia se era isso que a Artemísia tinha falado mesmo, porque ninguém no estádio tinha prestado atenção. Mas o Dr. Mentalis perguntou para ela se era isso mesmo que ela tinha falado.
Mais ou menos — respondeu Artemísia, e todos no estádio lotado começaram a aplaudir o triunfo do Dr. Mentalis, que satisfeito da vida colocou de volta o turbante e começou a cavalgar um tigre pelo palco com os braços cruzados no peito ao som de “Assim Falava Zaratustra”.
Essa imagem do Dr. Mentalis cavalgando um tigre foi capa da revista Time com o título “O PODER DA MENTE – Como um brasileiro consegue saber o que está sentindo, ler os próprios pensamentos e prestar atenção em mulheres”.
Nessa época ele deu uma entrevista famosa para a TV.
ENTREVISTADORA: Você se tornou famoso por três truques: saber o que está sentindo, saber o que está pensando, e conseguir prestar atenção parcial em mulheres. O que esses três truques têm em comum?
DR. MENTALIS: Estar presente no momento. Graças a muita meditação, consigo ficar levemente atento ao momento presente. Isso permite que eu faça truques de palco, mas também permite que eu faça outras coisas na vida real que seriam consideradas extraordinárias pela massa ignara.
ENTREVISTADORA: Pode dar um exemplo?
Mas aqui o Dr. Mentalis se distraiu e a pergunta teve que ser repetida por um entrevistador homem.
ENTREVISTADOR: Pode dar um exemplo?
DR. MENTALIS: Por exemplo, quando estou tendo relações sexuais, consigo pensar na mulher com quem estou tendo a relação.
ENTREVISTADOR: O tempo todo?
DR. MENTALIS: Bom, claro que não o tempo todo, mas às vezes, durante a relação, percebo que estou com esta mulher e não aquela. E presto atenção nela durante alguns momentos.
ENTREVISTADOR: Com todo respeito, é difícil acreditar que isso esteja dentro da capacidade de um ser humano.
DR. MENTALIS: Mas é inteiramente possível e já fiz isso algumas vezes.

Não se sabe exatamente o que causou o desaparecimento dos seus poderes psíquicos – fala-se de uma febre, do abuso pecuniário de dons sobrenaturais, de alcoolismo –, mas o fato é que a derrocada chegou de um momento para o outro. Um dia o Dr. Mentalis subiu no palco e se preparou para fazer o seu truque tradicional de descobrir o número em que ele estava pensando.
Vou escrever um número de um a cem neste papel, e vou olhar este papel e transmitir o número para a minha mente.
O Dr. Mentalis escreveu o número 41 no papel, que foi projetado num telão.
Que loucura — disse o Freddy Freddy (foi no programa do Freddy Freddy). — E agora?
Agora vou olhar pro papel e ao mesmo tempo transmitir o número pra minha mente. Preciso de toda concentração!
Boa sorte, Dr. Mentalis!
O Dr. Mentalis ficou olhando fixo para o papel onde estava escrito o número 41.
Estou ficando melancólico! — gritou o Freddy Freddy, que na verdade estava ficando nervoso, mas ao contrário do Dr. Mentalis não era capaz de saber como estava se sentindo. — Que número é, Dr. Mentalis?
E o Dr. Mentalis, olhando para o número escrito no papel:
Não consigo captar… Um momento…
Algum problema, Dr. Mentalis?
O Dr. Mentalis em silêncio.
Quer mais um minuto, Dr. Mentalis? Podemos começar a contagem regressiva?
Espera… Não consigo… Só um segundo…
O programa começou a contagem regressiva de um minuto.
O Dr. Mentalis olhando o número escrito no papel.
Talvez… Espere… Sim, acho que…
E por fim, num tom de dúvida:
Doze?
Som de decepção do público.
Não, Dr. Mentalis! Infelizmente é 41!
Não pode ser… Vi claramente o número 12 na minha mente!
Confira no papel que o senhor tem aberto na mão, Dr. Mentalis!
E o Dr. Mentalis olhou derrotado para o papel, para o qual na verdade nunca tinha deixado de olhar.
Foi a última apresentação do Francisco Marcelino como Dr. Mentalis. O turbante foi para o fundo do armário, junto de um alaúde empoeirado e uma bola de futebol murcha.
Anos depois, sob efeito de muita sambuca, Marcelino tirou do armário aquele turbante duro e coberto de fungos e o colocou na cabeça durante uns minutos, se olhando no espelho e ficando triste, mas sem saber que estava se sentindo triste (pensou que achou engraçado).
Hoje Francisco Marcelino anda pelas calçadas rachadas do seu bairro, um homem comum que de vez em quando se pergunta vagamente, muito vagamente, o que diabos estará pensando ou sentindo.

Alexandre Soares Silva, in O Homem que Lia os Seus Próprios Pensamentos

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