Lavras tinha sido uma cidade católica.
Mais importante que sua localização na geografia dos homens era sua
localização na geografia divina. Como era conhecimento comum
inquestionável, Dante escreveu sobre isso, a geografia divina
dividia o universo em três partes. Nas alturas, o céu, morada da
Santíssima Trindade e dos anjos de luz. Nas funduras, o inferno,
morada do Diabo e dos anjos de trevas. No meio, encruzilhada de
caminhos, estava a terra. Pois Lavras, como todas as cidades do
mundo, estava localizada precisamente na encruzilhada entre os
caminhos infernais e os caminhos celestiais. Em Lavras se decidia o
destino eterno dos homens. Era também conhecimento comum
inquestionável que Deus Todo-Poderoso havia colocado os caminhos
celestiais sob a guarda de Igreja. A Igreja tinha o monopólio de
todos os pedágios que levavam aos céus. E o preço do pedágio eram
os sacramentos que padres e bispos ministravam como se fossem o
próprio Deus (daí o nome “vigário”, que é aquele que tem o
poder para realizar funções de um outro). Deus havia dado uma
procuração plena aos sacerdotes. Assim, era também conhecimento
comum inquestionável que “fora da Igreja não há salvação”.
Sem Igreja, sem padre e sem sacramento ninguém ia para o céu.
Todo mundo acreditava. Todo mundo era
católico. Todo mundo tinha medo do inferno. Os padres, em suas
batinas pretas e chapéus pretos redondos, eram a presença do
próprio Deus. Mas a epifania do divino acontecia de forma especial
quando o senhor Bispo aparecia para uma visita pastoral. Com a
presença do Bispo os céus ficavam mais próximos da terra. Era uma
comoção! O que todos queriam não era ouvir o Bispo; era ver o
Bispo, chegar perto do Bispo, tocar o braço do Bispo, beijar o anel
do Bispo. O toque do Bispo era mágico, cheio de poder celestial.
Todo mundo queria ter o senhor Bispo como
hóspede à sua mesa. Sucediam-se banquetes pantagruélicos, leitoa,
lombo, pernil, frango assado, frango com quiabo, frango ao molho
pardo, frango com ora-pro-nóbis, tutu, arroz, biscoitões e pães de
queijo acabados de sair dos fornos de barro, isso sem falar nas
sobremesas, fios-de-ovos, papo-de-anjo, engorda padre, arroz-doce,
boquinha de moça, doce de abóbora, doce de figo em calda, de
pêssego, goiabada... O senhor Bispo não podia recusar. Seria
indelicadeza. E nem comer pouco. Ele nem bem terminava com o tutu
mole com torresmo e a anfitriã que rodeava a mesa o servia de novo,
sem pedir licença. As mulheres jamais se assentavam à mesa. Ficavam
de pé, rodando, vigiando para que nenhum prato ficasse vazio, num
vai-e-vem entre a sala e a cozinha. À mesa assentavam-se os homens,
o marido, o senhor Bispo, e os sempre silenciosos filhos. Essa ordem
não era arbitrária. Não era invenção de mineiros. Era uma ordem
teológica, eclesial.
Pois a Igreja sempre soube e pregou que
as mulheres são servidoras. É no serviço obediente e silencioso
que as mulheres encontram sua remissão espiritual por haverem comido
do fruto proibido. Por isso, por razões teológicas, é que as
freiras servem aos padres e aos bispos. Naquela sala de jantar,
homens assentados, sendo servidos pela mulher em pé, celebrava-se um
pequena liturgia dedicada à ordem imutável do universo.
A barriga do Bispo crescia. Se hoje as
barrigas grandes são olhadas com desdém, naqueles tempos eram
olhadas com orgulho, eram sinal de saúde, à semelhança do orgulho
com que os musculosos hoje exibem seus bíceps e peitorais. Uma
esposa, comentando a barriga do seu marido, diria orgulhosa: “Tá
sacudido! Tá gordo que nem um capado...” . Boa mulher era aquela
que engordava o marido. Sinal de que na mesa se serviam prazeres.
Sinais dos prazeres na cama, só as barrigas das mulheres...
A fama da barriga dos clérigos vem de
longa data. Lutero chegou a observar que há dois lugares na Igreja
que não podem ser tocados: a tiara do Papa e a barriga do monge...
Se o senhor Bispo era sagrado, sua
barriga também tinha de ser. O tamanho da barriga do senhor Bispo
revelava o tamanho do amor de suas ovelhas. Freqüentemente a barriga
e gorduras adjacentes criavam problemas na hora de montar a cavalo.
Por mais que se apertasse a barrigueira, ela não aguentava o peso do
montante, e o arreio girava no corpo do cavalo e o cavaleiro ia para
o chão. Para se evitar esse vexame, um homem forte segurava a cabeça
do arreio, no lado de lá.
As visitas do senhor Bispo eram curtas.
Ele tinha muitas outras ovelhas em outros apriscos. Muitas almas
perturbadas necessitavam do seu poder. Tinha de se despedir. Chegava
então o dia da partida. Grande tristeza. Terminavam os banquetes. O
céu ficaria mais longe. O senhor Bispo, em suas vestes de cor
púrpura, ajudado pelo homem que segurava a cabeça do arreio,
montava o seu cavalo e percorria ruas da cidade, numa bênção
derradeira. Atrás da montaria do senhor Bispo caminhava um séquito
de mulheres beatas que choravam e gritavam, enquanto arrancavam os
seus cabelos, como demonstração de desespero. Não poderia haver
demonstração maior de fé católica que esse espetáculo. Como
disse, Lavras era uma cidade católica.
De todos os tempos do ano o mais católico
era a Quaresma. Quaresma é o tempo quando Deus está fraco e o Diabo
está forte. As hostes do mundo das trevas estão soltas. Seres
infernais assombram o mundo. A Mula-sem-cabeça, que soltava fogo
pelas ventas, dentre todos era o assombro mais temido. Sempre havia
alguém que jurava havê-la visto numa rua escura. De noite era
perigoso sair. Ninguém se atrevia. Especialmente nas proximidades do
cemitério. Na Quaresma as almas penadas saíam dos túmulos. A
alegria estava proibida. Havia de se ser solidário com a tristeza de
um Deus que morria. Silenciavam-se os sinos e todos os instrumentos
de música. O que se ouvia era o barulho seco das matracas, ferro
contra madeira, e o zunido dos berra-bois nas noites, que uivavam ao
vento como se fossem gemidos dos condenados. As famílias se reuniam
em torno do fogão para contar casos de assombração e para rezar.
Chegava então a Semana Santa, as procissões vagarosas, o Cristo
carregando a cruz coberto de roxo, ensanguentado, a banda de música
tocando a marcha fúnebre ao ritmo grave das tubas. Todos caminhavam
contritos e silenciosos em passo de enterro. As mulheres, as mais
compungidas, equilibravam pesadas pedras na cabeça, penitências
pelos pecados do mundo. Era preciso sofrer para ficar junto a Deus.
Verdade é que o Diabo por vezes se metia
entre os fiéis e fazia das suas. Tal como aconteceu numa procissão
em que se conduzia o Nosso Senhor dos Passos: a cabeleira do santo
enroscou nos fios de eletricidade, provocando um curto-circuito que
incendiou a cabeleira. Os carregadores do andor ficaram com medo,
puseram o andor no chão e deixaram o Senhor dos Passos sozinho com
sua cabeleira ardendo.
Mas então chegava o Sábado de Aleluia.
Cristo ressuscitou! Deus derrotou o Diabo! A tristeza virava folia!
Tudo era festa, música, cantoria gritada, sanfonas, violões, as
moças namorando de longe com os olhos, a cachaça, todo mundo
reunido na praça para ouvir a leitura do testamento do Judas e para
se vingar daquele que traíra Jesus com um beijo. Um boneco do Judas,
amarrado a um pau, recheado de bombinhas, explodia. Os foguetes
estouravam anunciando a alegria! E era a farra de subir no
pau-de-sebo... Passado o Sábado de Aleluia a vida voltava à sua
rotina normal, até a Quaresma do ano seguinte.
Rubem Alves, in O velho que acordou criança
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