domingo, 3 de outubro de 2021

Cidade católica

Lavras tinha sido uma cidade católica. Mais importante que sua localização na geografia dos homens era sua localização na geografia divina. Como era conhecimento comum inquestionável, Dante escreveu sobre isso, a geografia divina dividia o universo em três partes. Nas alturas, o céu, morada da Santíssima Trindade e dos anjos de luz. Nas funduras, o inferno, morada do Diabo e dos anjos de trevas. No meio, encruzilhada de caminhos, estava a terra. Pois Lavras, como todas as cidades do mundo, estava localizada precisamente na encruzilhada entre os caminhos infernais e os caminhos celestiais. Em Lavras se decidia o destino eterno dos homens. Era também conhecimento comum inquestionável que Deus Todo-Poderoso havia colocado os caminhos celestiais sob a guarda de Igreja. A Igreja tinha o monopólio de todos os pedágios que levavam aos céus. E o preço do pedágio eram os sacramentos que padres e bispos ministravam como se fossem o próprio Deus (daí o nome “vigário”, que é aquele que tem o poder para realizar funções de um outro). Deus havia dado uma procuração plena aos sacerdotes. Assim, era também conhecimento comum inquestionável que “fora da Igreja não há salvação”. Sem Igreja, sem padre e sem sacramento ninguém ia para o céu.
Todo mundo acreditava. Todo mundo era católico. Todo mundo tinha medo do inferno. Os padres, em suas batinas pretas e chapéus pretos redondos, eram a presença do próprio Deus. Mas a epifania do divino acontecia de forma especial quando o senhor Bispo aparecia para uma visita pastoral. Com a presença do Bispo os céus ficavam mais próximos da terra. Era uma comoção! O que todos queriam não era ouvir o Bispo; era ver o Bispo, chegar perto do Bispo, tocar o braço do Bispo, beijar o anel do Bispo. O toque do Bispo era mágico, cheio de poder celestial.
Todo mundo queria ter o senhor Bispo como hóspede à sua mesa. Sucediam-se banquetes pantagruélicos, leitoa, lombo, pernil, frango assado, frango com quiabo, frango ao molho pardo, frango com ora-pro-nóbis, tutu, arroz, biscoitões e pães de queijo acabados de sair dos fornos de barro, isso sem falar nas sobremesas, fios-de-ovos, papo-de-anjo, engorda padre, arroz-doce, boquinha de moça, doce de abóbora, doce de figo em calda, de pêssego, goiabada... O senhor Bispo não podia recusar. Seria indelicadeza. E nem comer pouco. Ele nem bem terminava com o tutu mole com torresmo e a anfitriã que rodeava a mesa o servia de novo, sem pedir licença. As mulheres jamais se assentavam à mesa. Ficavam de pé, rodando, vigiando para que nenhum prato ficasse vazio, num vai-e-vem entre a sala e a cozinha. À mesa assentavam-se os homens, o marido, o senhor Bispo, e os sempre silenciosos filhos. Essa ordem não era arbitrária. Não era invenção de mineiros. Era uma ordem teológica, eclesial.
Pois a Igreja sempre soube e pregou que as mulheres são servidoras. É no serviço obediente e silencioso que as mulheres encontram sua remissão espiritual por haverem comido do fruto proibido. Por isso, por razões teológicas, é que as freiras servem aos padres e aos bispos. Naquela sala de jantar, homens assentados, sendo servidos pela mulher em pé, celebrava-se um pequena liturgia dedicada à ordem imutável do universo.
A barriga do Bispo crescia. Se hoje as barrigas grandes são olhadas com desdém, naqueles tempos eram olhadas com orgulho, eram sinal de saúde, à semelhança do orgulho com que os musculosos hoje exibem seus bíceps e peitorais. Uma esposa, comentando a barriga do seu marido, diria orgulhosa: “Tá sacudido! Tá gordo que nem um capado...” . Boa mulher era aquela que engordava o marido. Sinal de que na mesa se serviam prazeres. Sinais dos prazeres na cama, só as barrigas das mulheres...
A fama da barriga dos clérigos vem de longa data. Lutero chegou a observar que há dois lugares na Igreja que não podem ser tocados: a tiara do Papa e a barriga do monge...
Se o senhor Bispo era sagrado, sua barriga também tinha de ser. O tamanho da barriga do senhor Bispo revelava o tamanho do amor de suas ovelhas. Freqüentemente a barriga e gorduras adjacentes criavam problemas na hora de montar a cavalo. Por mais que se apertasse a barrigueira, ela não aguentava o peso do montante, e o arreio girava no corpo do cavalo e o cavaleiro ia para o chão. Para se evitar esse vexame, um homem forte segurava a cabeça do arreio, no lado de lá.
As visitas do senhor Bispo eram curtas. Ele tinha muitas outras ovelhas em outros apriscos. Muitas almas perturbadas necessitavam do seu poder. Tinha de se despedir. Chegava então o dia da partida. Grande tristeza. Terminavam os banquetes. O céu ficaria mais longe. O senhor Bispo, em suas vestes de cor púrpura, ajudado pelo homem que segurava a cabeça do arreio, montava o seu cavalo e percorria ruas da cidade, numa bênção derradeira. Atrás da montaria do senhor Bispo caminhava um séquito de mulheres beatas que choravam e gritavam, enquanto arrancavam os seus cabelos, como demonstração de desespero. Não poderia haver demonstração maior de fé católica que esse espetáculo. Como disse, Lavras era uma cidade católica.
De todos os tempos do ano o mais católico era a Quaresma. Quaresma é o tempo quando Deus está fraco e o Diabo está forte. As hostes do mundo das trevas estão soltas. Seres infernais assombram o mundo. A Mula-sem-cabeça, que soltava fogo pelas ventas, dentre todos era o assombro mais temido. Sempre havia alguém que jurava havê-la visto numa rua escura. De noite era perigoso sair. Ninguém se atrevia. Especialmente nas proximidades do cemitério. Na Quaresma as almas penadas saíam dos túmulos. A alegria estava proibida. Havia de se ser solidário com a tristeza de um Deus que morria. Silenciavam-se os sinos e todos os instrumentos de música. O que se ouvia era o barulho seco das matracas, ferro contra madeira, e o zunido dos berra-bois nas noites, que uivavam ao vento como se fossem gemidos dos condenados. As famílias se reuniam em torno do fogão para contar casos de assombração e para rezar. Chegava então a Semana Santa, as procissões vagarosas, o Cristo carregando a cruz coberto de roxo, ensanguentado, a banda de música tocando a marcha fúnebre ao ritmo grave das tubas. Todos caminhavam contritos e silenciosos em passo de enterro. As mulheres, as mais compungidas, equilibravam pesadas pedras na cabeça, penitências pelos pecados do mundo. Era preciso sofrer para ficar junto a Deus.
Verdade é que o Diabo por vezes se metia entre os fiéis e fazia das suas. Tal como aconteceu numa procissão em que se conduzia o Nosso Senhor dos Passos: a cabeleira do santo enroscou nos fios de eletricidade, provocando um curto-circuito que incendiou a cabeleira. Os carregadores do andor ficaram com medo, puseram o andor no chão e deixaram o Senhor dos Passos sozinho com sua cabeleira ardendo.
Mas então chegava o Sábado de Aleluia. Cristo ressuscitou! Deus derrotou o Diabo! A tristeza virava folia! Tudo era festa, música, cantoria gritada, sanfonas, violões, as moças namorando de longe com os olhos, a cachaça, todo mundo reunido na praça para ouvir a leitura do testamento do Judas e para se vingar daquele que traíra Jesus com um beijo. Um boneco do Judas, amarrado a um pau, recheado de bombinhas, explodia. Os foguetes estouravam anunciando a alegria! E era a farra de subir no pau-de-sebo... Passado o Sábado de Aleluia a vida voltava à sua rotina normal, até a Quaresma do ano seguinte.

Rubem Alves, in O velho que acordou criança

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