O primeiro que, tendo cercado um terreno,
se lembrou de dizer: Isto é meu, e encontrou pessoas bastantes
simples para o acreditar, foi o verdadeiro fundador da sociedade
civil.
Quantos crimes, guerras, assassínios,
misérias e horrores não teria poupado ao gênero humano aquele que,
arrancando as estacas ou tapando os buracos, tivesse gritado aos seus
semelhantes: “Livrai-vos de escutar esse impostor; estareis
perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos, e a terra de
ninguém!”. Parece, porém, que as coisas já tinham chegado ao
ponto de não mais poder ficar como estavam: porque essa ideia de
propriedade, dependendo muito de ideias anteriores que só puderam
nascer sucessivamente, não se formou de repente no espírito humano:
foi preciso fazer muitos progressos, adquirir muita indústria e
luzes, transmiti-las e aumentá-las de idade em idade, antes de
chegar a esse último termo do estado de natureza. Retomemos, pois,
as coisas de mais alto, e tratemos de reunir, sob um só
ponto-de-vista, essa lenta sucessão de acontecimentos e de
conhecimentos na sua ordem mais natural.
O primeiro sentimento do homem foi o de
sua existência; o seu primeiro cuidado, o de sua conservação. As
produções da terra lhe forneciam todos os socorros necessários; o
instinto o levou a fazer uso delas. A fome, outros apetites,
fazendo-o experimentar, alternativamente, diversas maneiras de
existir, houve uma que o convidou a perpetuar a sua espécie; e esse
pendor cego, desprovido de todo sentimento de coração, não
produzia senão um ato puramente animal: satisfeita a necessidade, os
dois sexos nunca mais se reconheciam e o próprio filho nada mais
representava para a mãe logo que podia passar sem ela.
Tal foi a condição do homem ao nascer;
tal foi a vida de um animal, limitada primeiro às puras sensações
e aproveitando apenas os dons que lhe oferecia a natureza, longe de
pensar em lhe arrancar alguma coisa. Mas, logo, surgiram
dificuldades; foi preciso aprender a vencê-las: a altura das árvores
que o impedia de alcançar os frutos, a concorrência dos animais que
também procuravam nutrir-se, a ferocidade dos que queriam a sua
própria vida, tudo o obrigou a aplicar-se aos exercícios do corpo;
foi preciso tornar-se ágil, rápido na carreira, vigoroso no
combate. As armas naturais, que são os galhos das árvores e as
pedras, em breve estavam nas suas mãos. Aprendeu a vencer os
obstáculos da natureza, a combater quando necessário os outros
animais, a disputar sua subsistência aos próprios homens, ou a se
compensar do que era preciso ceder ao mais forte.
A medida que o gênero humano se
estendia, as penas se multiplicavam com os homens. A diferença dos
terrenos, dos climas, das estações, forçou-os a estabelecê-la na
maneira de viver. Anos estéreis, invernos longos e rudes, verões
escaldantes, que tudo consomem, exigiram deles uma nova indústria.
Ao longo do mar e dos rios, inventaram a linha e o anzol, e se
tornaram pescadores e ictiófagos. Nas florestas, fizeram arcos e
flechas, e se tornaram caçadores e guerreiros. Nos países frios,
cobriram-se de peles de animais por eles mortos. O trovão, uma
visão, ou qualquer feliz acaso, lhes fez conhecer o fogo, novo
recurso contra o rigor do inverno: aprenderam a conservar esse
elemento, depois a reproduzi-lo, e enfim a preparar nele as carnes,
que antes devoravam cruas.
Essa aplicação reiterada de seres
diversos a si mesmos e de uns aos outros teve, naturalmente, de
engendrar, no espírito do homem, as percepções de certas relações.
Essas relações, que exprimimos pelas palavras grande, pequeno,
forte, fraco, depressa, devagar, medroso, ousado, e outras ideias
semelhantes, comparadas quando necessário, e quase sem nisso pensar,
produziram nele, finalmente, uma espécie de reflexão, ou antes, uma
prudência maquinal que lhe indicava as precauções mais necessárias
à sua segurança. As novas luzes que resultaram desse
desenvolvimento aumentaram a sua superioridade sobre os outros
animais, fazendo-lhe conhecê-la. Exercitou-se em lhes preparar
armadilhas, logrou-os de mil maneiras; e, embora muitos o
ultrapassassem em força no combate, ou em ligeireza na corrida,
daqueles que o podiam servir ou prejudicar, tornou-se com o tempo o
senhor de uns e o flagelo de outros. E, assim, o primeiro olhar que
lançou sobre si mesmo lhe produziu o primeiro movimento de orgulho;
assim, mal sabendo ainda distinguir as ordens e contemplando-se como
o primeiro por sua espécie, preparava-se já para pretender o mesmo
como indivíduo.
Embora os seus semelhantes não fossem
para ele o que são para nós, e embora não tivesse mais comércio
com eles do que com os outros animais, não foram esquecidos nas suas
observações. As semelhanças que o tempo lhe pode fazer perceber
entre eles, sua fêmea é ele mesmo, lhe fizeram julgar das que não
percebia; e, vendo que todos se conduziam como teria feito ele
próprio em circunstâncias semelhantes, concluiu que a sua maneira
de pensar e de sentir era inteiramente conforme à sua. E, essa
importante verdade, bem estabelecida em seu espírito, lhe fez
seguir, por um pressentimento tão seguro e mais pronto do que a
dialética, as melhores regras de conduta que, para sua vantagem e
segurança, lhe convinha observar para com eles.
Instruído pela experiência de que o
amor do bem-estar é o único móvel das ações humanas, achou-se em
estado de distinguir as raras ocasiões em que o interesse comum lhe
devia fazer contar com a assistência dos seus semelhantes, e as mais
raras ainda em que a concorrência lhe devia fazer desconfiar deles.
No primeiro caso, unia-se a eles em rebanho, ou quando muito por uma
espécie de associação livre que não obrigava a ninguém e que só
durava enquanto havia a necessidade passageira que a havia formado.
No segundo, cada qual procurava tirar suas vantagens, ou pela força
aberta, se acreditava poder, ou pela astúcia e sutileza, se se
sentia mais fraco.
Eis como os homens puderam,
insensivelmente, adquirir uma ideia grosseira dos compromissos mútuos
e da vantagem de os cumprir, mas somente na medida em que podia
exigi-lo o interesse presente e sensível; porque a previdência nada
era para eles; e, longe de se ocuparem com um porvir afastado, nem
mesmo pensavam no dia seguinte. Se se tratava de pegar um veado, cada
qual sentia bem que, para isso, devia ficar no seu posto; mas, se uma
lebre passava ao alcance de algum, é preciso não duvidar de que a
perseguia sem escrúpulos e, uma vez alcançada a sua presa, não lhe
importava que faltasse a dos companheiros.
É fácil compreender que tal comércio
não exigia uma linguagem mais refinada do que a das gralhas ou a dos
macacos que se reúnem em bandos mais ou menos semelhantes. Gritos
inarticulados, muitos gestos e alguns ruídos imitativos deviam
compor, durante muito tempo, a língua universal; acrescentem-se a
isso, em cada região, alguns sons articulados e convencionais, cuja
instituição, como já disse, não é muito fácil explicar, e temos
línguas particulares, mas grosseiras, imperfeitas e mais ou menos
como as que ainda hoje têm diversas nações selvagens.
Percorri, como um traço, multidões de
séculos, forçado pelo tempo que se escoa, pela abundância das
coisas que tenho que dizer e pelo progresso quase insensível dos
começos; porque, quanto mais lentos em se suceder eram os
acontecimentos, tanto mais estão prontos para serem descritos.
Esses primeiros progressos colocaram,
finalmente, o homem ao alcance de os fazer mais rápidos.[...]
Jean Jacques Rousseau, in Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens
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