Faz tantos anos, mas recordo aquele dia,
o dia do acidente que fez minha mãe e meu pai se desesperarem e
correrem na companhia de Sutério, na Rural em que eu sonhava
passear, não em meio ao choro e ao sangue, pela estrada até o
hospital. Fiz a viagem acompanhada da recordação do desespero que
tomou conta de Donana ao nos ver colocando sangue pela boca, chocada
ao ver sua mala fora do lugar de sempre, talvez esquecida da faca de
cabo de marfim embrulhada e recolhida depois. Só quando minha mãe,
avisada por dona Tonha, chegou apressada e se desesperou ao ver nosso
estado, perguntando de forma incessante o que havíamos feito,
sacudindo a mim e a Bibiana com tamanha violência que desconhecíamos
em seus gestos, foi que minha irmã, aos prantos e cuspindo sangue,
disse que tínhamos retirado o objeto da mala de nossa avó. Não
pude ver o que se passava depois com Donana, ao descobrir que
guardava um perigo, um objeto que nós, crianças, julgávamos não
ter a menor importância, a não ser a curiosidade de tê-lo nas
mãos, e depois enfeitiçadas por qual encanto, na boca. Um brilho
que se revelou de agouro, que se apossou de nossos olhos e nos fez
esquecer o mundo e os perigos que todos diziam ter os objetos
afiados, “cuidado com o fio de corte”, nos levando por fim ao
evento que atingiria nossa inocência para sempre.
Naquela manhã, cansada de brincar com as
bonecas de sabugo de milho, olhei para Bibiana e sugeri que
poderíamos ir para o quintal, no jirau, pegar um pedaço de brasa,
talvez um lagarto no mato e fazer as maldades que víamos outras
crianças da vizinhança cometerem aos bichos. Ela disse que não
queria. “E se fôssemos ver a mala de vó Donana?” “Ela está
cozinhando batatas.” “Espere”, me disse. Donana se perde na sua
imaginação. Donana vive no passado, logo estará perdida em seus
pensamentos avançando na mata depois do pomar e do galinheiro velho.
Sentamos na soleira da porta, vislumbrando a sombra de nossa avó se
afastar pela porta do fundo. É provável que Bibiana não soubesse o
que iria encontrar, mas eu me considerava mais esperta que minha
irmã, mesmo sendo mais nova. Já havia visto Donana arrumar e
desarrumar aquela mala muitas vezes, apesar da grossa camada de terra
que os ventos de setembro e outubro traziam todos os anos e que
ficava depositada sobre ela, como se há muito tempo não revolvesse
seus pertences. Havia visto, certa manhã, o desenrolar da faca de
cabo de marfim. Vi Donana polir sua prata com um pano sujo, enquanto
falava sozinha de Carmelita, a tia desaparecida. Poderíamos pegar a
faca para cortar os matos do lado de fora, cavoucar a terra, tratar
as caças da nossa imaginação. Poderíamos pegar a faca para
apontar os restos de lápis que tínhamos.
Mas a faca reluzia mais que tudo. Nela
nos víamos melhor que no caco de espelho que Donana guardava na
mesma mala. Soprei para minha irmã, no silêncio do quarto, sem a
agitação dos pássaros lá fora, uma pergunta: “Que gosto tem?”
“Deve ter gosto de colher”, Bibiana falou. Me deixa ver, pedi
agitada, pulando em cima da pele de caititu que cobria as ondulações
da terra no chão. “Não, eu primeiro”, Bibiana queria impor a
autoridade de irmã mais velha, que gostava de exibir. E se Donana
chegar e a encontrar com a faca na boca? Ela perde a pose e ganha uma
boa surra. Arrastei a cama empurrando meu corpo para trás para que
Donana ouvisse ao longe a movimentação e voltasse depressa. Ela
iria nos surpreender e acabaria a brincadeira, afinal, a ideia de
pegar a faca foi minha. Mas o aviso que lancei pelo ar não vingou,
então pensei em gritar. Minha irmã seria mais rápida ao lançar a
culpa sobre mim. Vou pegar a faca mesmo contra sua vontade. “Tem
gosto de colher?”
Retirei rápido de sua boca. Tive que
lutar por um instante com a força de sua mão. Achei que ela
resistiria mais, como resistia ao retirar algo seu, ou como eu mesma
resistia se tentasse retirar coisa minha. Não dei importância aos
seus olhos que cresceram. Coloquei a faca em minha boca, encantada
com o brilho. E minha avó Donana se distanciava do mundo com seus
pensamentos. Em minha mão aquele objeto pesou como uma rocha.
Retirei-a de forma violenta quando percebi que o feitiço se voltaria
contra mim, eu que seria surpreendida por nossa avó. Bibiana estaria
livre para negar até o fim. Quando retirei a faca e vi Bibiana
sangrando, senti que algo na minha boca também havia se rompido. Mas
a emoção, a respiração acelerada pela proximidade de ser
surpreendida, não me permitiram sentir naquele instante a dor que
sentiria depois. Guardei nas mãos a fração de minha língua, como
se por magia meu pai e minha avó pudessem colocá-la de novo no
lugar. O curador Zeca Chapéu Grande tudo podia. Se transformava em
muitos encantados nas noites de jarê. Mudava a voz, cantava,
rodopiava ágil pela sala, investido dos poderes dos espíritos das
matas, das águas, das serras e do ar. Meu pai curava loucos e
bêbados, colocaria meu pedaço de língua em minha boca. Enquanto
pensava estouvada numa solução para minha desgraça, Donana nos
surpreendeu, antes mesmo de Bibiana colocar a mala de novo no lugar.
Ainda vi sua mão desabar na cabeça de minha irmã, como imaginei
minutos antes. Com a mesma força desabou na minha. Mas eu comecei a
fraquejar porque perdia muito sangue.
Me lembro de ter ouvido os médicos
falarem que teria dificuldade para falar e me alimentar. Que teria
que voltar sempre à cidade para ser acompanhada, fazer exercícios
de fala. Mas não seria possível, não havia como deixar Água
Negra, morávamos distante, não haveria maneira de nos deslocarmos
por tantas léguas com tanta frequência. No hospital da cidade mais
próxima não havia médico que soubesse fazer o tratamento.
Por isso me calei.
Passado muito tempo, resolvi tentar
falar, porque estava sozinha me embrenhando na mesma vereda que
Donana costumava entrar. Ainda recordo da palavra que escolhi: arado.
Me deleitava vendo meu pai conduzindo o arado velho da fazenda
carregado pelo boi, rasgando a terra para depois lançar grãos de
arroz em torrões marrons e vermelhos revolvidos. Gostava do som
redondo, fácil e ruidoso que tinha ao ser enunciado. “Vou
trabalhar no arado.” “Vou arar a terra.” “Seria bom ter um
arado novo, esse arado está troncho e velho.” O som que deixou
minha boca era uma aberração, uma desordem, como se no lugar do
pedaço perdido da língua tivesse um ovo quente. Era um arado torto,
deformado, que penetrava a terra de tal forma a deixá-la infértil,
destruída, dilacerada. Tentei outras vezes, sozinha, dizer a mesma
palavra, e depois outras, tentar restituir a fala ao meu corpo para
ser a Belonísia de antes, mas logo me vi impelida a desistir. Nem
mesmo quando o edema se desfez consegui reproduzir uma palavra que
pudesse ser entendida por mim mesma. Não iria reproduzir os sons que
me provocavam desgosto e repulsa e ser alvo de zombaria para as
crianças na casa de Firmina, ou para as filhas de Tonha.
Durante todos esses anos, somente quando
estava só, e mesmo assim muito raramente, ousava dizer algo. Era um
tipo de tortura que me impunha de forma consciente, como se a faca de
Donana pudesse me percorrer por dentro, rasgando toda a força que
tentei cultivar desde então. Como se o arado velho e retorcido
percorresse minhas entranhas lacerando minha carne. Se esvaía toda a
coragem de que tentei me investir para viver naquela terra hostil de
sol perene e chuva eventual, de maus tratos, onde gente morria sem
assistência, onde vivíamos como gado, trabalhando sem ter nada em
troca, nem mesmo o descanso, e as únicas coisas a que tínhamos
direito era morar até quando os senhores quisessem e a cova que nos
esperava fosse cavada na Viração, caso não deixássemos Água
Negra.
Mas eu persistia e repetia as palavras
mais duras, as que não gostamos de ouvir, para mim mesma, nos
caminhos que percorria sozinha e que com o passar do tempo foram se
tornando mais frequentes. Não me furtava a dizer o que faria muitos
correrem, temendo a virulência de uma língua. Eram palavras
repetidas por minha voz deformada, estranha, carregada de rancor por
muitas coisas, e que só fez crescer ao longo dos anos. Agora, com os
maus-tratos de Tobias, elas se tornaram mais vis, eram gritadas por
minhas ancestrais, por Donana, por minha mãe, pelas avós que não
conheci, e que chegavam a mim para que as repetisse com o horror de
meus sons, e assim ganhassem os contornos tristes e inesquecíveis
que me manteriam viva.
Itamar Vieira Junior, in Torto Arado
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