segunda-feira, 19 de julho de 2021

Torto Arado / 8

Faz tantos anos, mas recordo aquele dia, o dia do acidente que fez minha mãe e meu pai se desesperarem e correrem na companhia de Sutério, na Rural em que eu sonhava passear, não em meio ao choro e ao sangue, pela estrada até o hospital. Fiz a viagem acompanhada da recordação do desespero que tomou conta de Donana ao nos ver colocando sangue pela boca, chocada ao ver sua mala fora do lugar de sempre, talvez esquecida da faca de cabo de marfim embrulhada e recolhida depois. Só quando minha mãe, avisada por dona Tonha, chegou apressada e se desesperou ao ver nosso estado, perguntando de forma incessante o que havíamos feito, sacudindo a mim e a Bibiana com tamanha violência que desconhecíamos em seus gestos, foi que minha irmã, aos prantos e cuspindo sangue, disse que tínhamos retirado o objeto da mala de nossa avó. Não pude ver o que se passava depois com Donana, ao descobrir que guardava um perigo, um objeto que nós, crianças, julgávamos não ter a menor importância, a não ser a curiosidade de tê-lo nas mãos, e depois enfeitiçadas por qual encanto, na boca. Um brilho que se revelou de agouro, que se apossou de nossos olhos e nos fez esquecer o mundo e os perigos que todos diziam ter os objetos afiados, cuidado com o fio de corte, nos levando por fim ao evento que atingiria nossa inocência para sempre.
Naquela manhã, cansada de brincar com as bonecas de sabugo de milho, olhei para Bibiana e sugeri que poderíamos ir para o quintal, no jirau, pegar um pedaço de brasa, talvez um lagarto no mato e fazer as maldades que víamos outras crianças da vizinhança cometerem aos bichos. Ela disse que não queria. “E se fôssemos ver a mala de vó Donana?” “Ela está cozinhando batatas.” “Espere”, me disse. Donana se perde na sua imaginação. Donana vive no passado, logo estará perdida em seus pensamentos avançando na mata depois do pomar e do galinheiro velho. Sentamos na soleira da porta, vislumbrando a sombra de nossa avó se afastar pela porta do fundo. É provável que Bibiana não soubesse o que iria encontrar, mas eu me considerava mais esperta que minha irmã, mesmo sendo mais nova. Já havia visto Donana arrumar e desarrumar aquela mala muitas vezes, apesar da grossa camada de terra que os ventos de setembro e outubro traziam todos os anos e que ficava depositada sobre ela, como se há muito tempo não revolvesse seus pertences. Havia visto, certa manhã, o desenrolar da faca de cabo de marfim. Vi Donana polir sua prata com um pano sujo, enquanto falava sozinha de Carmelita, a tia desaparecida. Poderíamos pegar a faca para cortar os matos do lado de fora, cavoucar a terra, tratar as caças da nossa imaginação. Poderíamos pegar a faca para apontar os restos de lápis que tínhamos.
Mas a faca reluzia mais que tudo. Nela nos víamos melhor que no caco de espelho que Donana guardava na mesma mala. Soprei para minha irmã, no silêncio do quarto, sem a agitação dos pássaros lá fora, uma pergunta: “Que gosto tem?” “Deve ter gosto de colher”, Bibiana falou. Me deixa ver, pedi agitada, pulando em cima da pele de caititu que cobria as ondulações da terra no chão. “Não, eu primeiro”, Bibiana queria impor a autoridade de irmã mais velha, que gostava de exibir. E se Donana chegar e a encontrar com a faca na boca? Ela perde a pose e ganha uma boa surra. Arrastei a cama empurrando meu corpo para trás para que Donana ouvisse ao longe a movimentação e voltasse depressa. Ela iria nos surpreender e acabaria a brincadeira, afinal, a ideia de pegar a faca foi minha. Mas o aviso que lancei pelo ar não vingou, então pensei em gritar. Minha irmã seria mais rápida ao lançar a culpa sobre mim. Vou pegar a faca mesmo contra sua vontade. “Tem gosto de colher?”
Retirei rápido de sua boca. Tive que lutar por um instante com a força de sua mão. Achei que ela resistiria mais, como resistia ao retirar algo seu, ou como eu mesma resistia se tentasse retirar coisa minha. Não dei importância aos seus olhos que cresceram. Coloquei a faca em minha boca, encantada com o brilho. E minha avó Donana se distanciava do mundo com seus pensamentos. Em minha mão aquele objeto pesou como uma rocha. Retirei-a de forma violenta quando percebi que o feitiço se voltaria contra mim, eu que seria surpreendida por nossa avó. Bibiana estaria livre para negar até o fim. Quando retirei a faca e vi Bibiana sangrando, senti que algo na minha boca também havia se rompido. Mas a emoção, a respiração acelerada pela proximidade de ser surpreendida, não me permitiram sentir naquele instante a dor que sentiria depois. Guardei nas mãos a fração de minha língua, como se por magia meu pai e minha avó pudessem colocá-la de novo no lugar. O curador Zeca Chapéu Grande tudo podia. Se transformava em muitos encantados nas noites de jarê. Mudava a voz, cantava, rodopiava ágil pela sala, investido dos poderes dos espíritos das matas, das águas, das serras e do ar. Meu pai curava loucos e bêbados, colocaria meu pedaço de língua em minha boca. Enquanto pensava estouvada numa solução para minha desgraça, Donana nos surpreendeu, antes mesmo de Bibiana colocar a mala de novo no lugar. Ainda vi sua mão desabar na cabeça de minha irmã, como imaginei minutos antes. Com a mesma força desabou na minha. Mas eu comecei a fraquejar porque perdia muito sangue.
Me lembro de ter ouvido os médicos falarem que teria dificuldade para falar e me alimentar. Que teria que voltar sempre à cidade para ser acompanhada, fazer exercícios de fala. Mas não seria possível, não havia como deixar Água Negra, morávamos distante, não haveria maneira de nos deslocarmos por tantas léguas com tanta frequência. No hospital da cidade mais próxima não havia médico que soubesse fazer o tratamento.
Por isso me calei.
Passado muito tempo, resolvi tentar falar, porque estava sozinha me embrenhando na mesma vereda que Donana costumava entrar. Ainda recordo da palavra que escolhi: arado. Me deleitava vendo meu pai conduzindo o arado velho da fazenda carregado pelo boi, rasgando a terra para depois lançar grãos de arroz em torrões marrons e vermelhos revolvidos. Gostava do som redondo, fácil e ruidoso que tinha ao ser enunciado. “Vou trabalhar no arado.” “Vou arar a terra.” “Seria bom ter um arado novo, esse arado está troncho e velho.” O som que deixou minha boca era uma aberração, uma desordem, como se no lugar do pedaço perdido da língua tivesse um ovo quente. Era um arado torto, deformado, que penetrava a terra de tal forma a deixá-la infértil, destruída, dilacerada. Tentei outras vezes, sozinha, dizer a mesma palavra, e depois outras, tentar restituir a fala ao meu corpo para ser a Belonísia de antes, mas logo me vi impelida a desistir. Nem mesmo quando o edema se desfez consegui reproduzir uma palavra que pudesse ser entendida por mim mesma. Não iria reproduzir os sons que me provocavam desgosto e repulsa e ser alvo de zombaria para as crianças na casa de Firmina, ou para as filhas de Tonha.
Durante todos esses anos, somente quando estava só, e mesmo assim muito raramente, ousava dizer algo. Era um tipo de tortura que me impunha de forma consciente, como se a faca de Donana pudesse me percorrer por dentro, rasgando toda a força que tentei cultivar desde então. Como se o arado velho e retorcido percorresse minhas entranhas lacerando minha carne. Se esvaía toda a coragem de que tentei me investir para viver naquela terra hostil de sol perene e chuva eventual, de maus tratos, onde gente morria sem assistência, onde vivíamos como gado, trabalhando sem ter nada em troca, nem mesmo o descanso, e as únicas coisas a que tínhamos direito era morar até quando os senhores quisessem e a cova que nos esperava fosse cavada na Viração, caso não deixássemos Água Negra.
Mas eu persistia e repetia as palavras mais duras, as que não gostamos de ouvir, para mim mesma, nos caminhos que percorria sozinha e que com o passar do tempo foram se tornando mais frequentes. Não me furtava a dizer o que faria muitos correrem, temendo a virulência de uma língua. Eram palavras repetidas por minha voz deformada, estranha, carregada de rancor por muitas coisas, e que só fez crescer ao longo dos anos. Agora, com os maus-tratos de Tobias, elas se tornaram mais vis, eram gritadas por minhas ancestrais, por Donana, por minha mãe, pelas avós que não conheci, e que chegavam a mim para que as repetisse com o horror de meus sons, e assim ganhassem os contornos tristes e inesquecíveis que me manteriam viva.

Itamar Vieira Junior, in Torto Arado

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