sexta-feira, 9 de julho de 2021

Torto Arado / 7

Um dia, logo depois de Tobias sair a cavalo para a lida com Sutério, Maria Cabocla adentrou a casa num repente que me fez imaginar que era alguma maldade à espreita, algum homem a entrar pela porta para atacar a mulher que vivia sozinha. Ela estava com a roupa rasgada, chorando muito, o corpo tremia, carregava seu menino caçulo também aos prantos. Não entendia muita coisa do que dizia, ouvia apenas algumas repetições, ele vai me matar. Os olhos estavam arregalados, o cabelo liso grudado no rosto de suor e o muco viscoso deixava o nariz.
Ela se sentou. Fechei a porta de casa para ver se seu pavor diminuía, para abafar o som dos choros que ecoavam porta afora. Servi um copo de água, tomei o menino em meus braços, mas nada do que fazia parecia amenizar o sofrimento dos dois. Só depois de algum tempo, Maria Cabocla me disse que fugia do marido, que estava louco, ensandecido, e que as outras crianças haviam se embrenhado na mata. Senti um arrepio só de pensar que aquele homem adentrasse a casa para buscar Maria Cabocla, além de me dar umas pancadas por ter violado a regra de que não se deve meter em briga de marido e mulher. Depois tentei me acalmar. Tobias era um homem valente e respeitado. Conhecia Aparecido, tinham boa relação, não eram compadres, mas eram bons vizinhos. Ele não invadiria a casa sem permissão. Catei umas folhas de capim santo. Coloquei água no fogo. Servi Maria Cabocla, que não me olhava, soluçava como criança. Encostei o copo de chá na sua boca, estava morno, precisava beber. Foi então que vi seu olho roxo, um ferimento acima da pálpebra, e senti amargura.
Fiz um emplastro com o que tinha de mais fácil no quintal, lembrando os gestos da cura que me foram passados por meus pais e minha avó, sem que eu mesma soubesse que sabia tudo aquilo. Passei no seu machucado. Passei minhas mãos no seu cabelo, amarrei com um tira de tecido velho que guardava para as necessidades. Só naquele momento vi de forma mais clara o rosto de Maria Cabocla, com sua pele acobreada de índia. Nas vezes em que a encontrei para pedir fogo ou lavar roupa na beira do rio, me contava sua história, sua travessia, e não havia observado seus traços com a profundidade com que fazia naquele instante. De Maria guardava, sobretudo, as histórias das muitas fazendas por onde havia andado. Da avó que havia sido pega no mato a dente de cachorro. Maria estava magra, parecia ter uma fome permanente. Seu corpo miúdo tinha manchas púrpuras, era possível ver à luz do dia. Mulher bonita, minha mãe diria, mas maltratada. Todas nós, mulheres do campo, éramos um tanto maltratadas pelo sol e pela seca. Pelo trabalho árduo, pelas necessidades que passávamos, pelas crianças que paríamos muito cedo, uma atrás da outra, que murchavam nossos peitos e alargavam nossas ancas. Em pé, olhando Maria sentada na cadeira, vi seus seios pequenos, subindo e descendo na inquietude de sua respiração desolada. Me senti compadecida de sua situação e com vontade de dividir o pouco almoço, mas me contive porque ainda dava importância à reação de Tobias.
Assim como adentrou, Maria Cabocla, depois de um tempo curto, saiu porta afora, agradecendo. O menino dormia encangado em seu corpo, esquecido do choro. Disse que iria procurar pelos outros filhos, que o marido deveria ter saído, que a raiva haveria de ter passado. Quase li em seus pensamentos que foi uma tolice ter deixado a casa, se assustar, que o lugar de uma mulher é ao lado do marido. Não se sai de casa em casa contando o que acontece na sua própria, fazendo de sua vida assunto de mexerico.
À porta vi seu corpo deslizar ágil pelo caminho, e pedi aos encantados que a protegessem com seus meninos.
Mais tarde, Tobias chegou suado e com os olhos vermelhos. De longe senti que havia bebido. Amarrou o cavalo com dificuldade e entrou em casa trocando as pernas. Coloquei as panelas no fogão para aquecer, antes de sentar ele já reclamava da demora, que tinha fome, que trabalhava desde cedo. Fiquei apreensiva, aliás, essa apreensão havia se tornado uma rotina em minha vida naquele pouco tempo em que morávamos juntos. Pensava na grande besteira que foi ter saído de casa, mas ele nem queria me dar o direito ao pensamento naquele dia, berrava palavras violentas contra todos: desde os vizinhos até Sutério e a família Peixoto. Me angustiei ao imaginar que poderiam ter contado pelo caminho que havia abrigado a mulher de Aparecido, Maria Cabocla. Quando botei o prato na mesa, ele meteu as mãos sujas e levou à boca. Falou palavra que não entendi, parecia ter queimado os dedos na comida quente. Continuei ao seu lado. Depois que levou a mão à boca de novo, gritou que estava sem sal. Babava.
Era a primeira vez que o via completamente embriagado, nas festas bebia um tanto, mas se conservava de pé. Ficava com a boca vermelha e os olhos apertados pelas pálpebras caídas, mas não embolava a língua como fazia àquela mesa. Tentava entender o que ele dizia, e sem chance de me proteger, o prato veio na minha direção. Olhei para o chão e vi a comida espalhada. Aquele chão onde havia curvado meu corpo para varrer e assear com zelo. Senti raiva naquele instante, perguntei a mim mesma quem aquele vaqueiro ordinário pensava que era. No início, encarava com inquietação os acessos de fúria que passou a apresentar. Antes eram mais contidos. Agora tinha perdido as estribeiras. Dali a pouco esse cavalo iria me bater igual ao marido de Maria Cabocla. Mas eu já me sentia diferente, não tinha medo de homem, era neta de Donana e filha de Salu, que fizeram homens dobrar a língua para se dirigirem a elas.
Ele se recostou na parede, o banco pendia para trás. Olhei para o chão, imaginei que esperasse que fosse limpar tudo naquela mesma hora, mas passei saltando o prato de esmalte de andu e galinha esparramado. Limpei minhas mãos na roupa, saí pela porta do quintal, e me pus a cavoucar o canteiro de tomate e cebolinha. Esperava que viesse atrás de mim, valente, que quisesse levantar a mão para me bater. Ouvi gritar de casa que eu era burra. Que não falava. Que era aleijada da língua. Engoli cada insulto que ouvia de sua boca. Dava um golpe mais forte fazendo desprender da terra grandes torrões. Que se atrevesse a vir me agredir que faria o mesmo com sua carne: a faria soltar da face com um golpe apenas. Antes que qualquer homem resolvesse me bater, arrancaria as mãos ou cabeça, que não duvidassem de minha zanga.
Ele continuou com os insultos, mas deixei meu coração aquietar. Trabalhar a terra tinha desses sentimentos bons de amansar o peito, de serenar os pensamentos ruins que me cercavam. Pensava em tudo que estava distante, menos em Tobias descontrolado a poucos metros, na tapera que chamava de casa. Quando dei por mim já era noite, o sol se pôs, e o canteiro estava bonito, tinha crescido de trabalho. Voltei para casa para limpar a cozinha. Guardei a comida atirada sem respeito ao chão num embrulho para Fusco. Iria à casa de minha mãe na manhã seguinte, ele quisesse ou não. Estava com o peito apertado de saudade daquele pedaço de chão que eu conhecia como a palma de minha mão. Não faria comida para ele. Tinha meu orgulho, não era humilde, muito menos não sabia perdoar. Se a comida não estava boa, que fizesse melhor. Como poderia dizer isso? Não adiantava escrever, ele não iria entender. Tobias só sabia assinar o nome, como a maioria dos trabalhadores. Então, para demonstrar minha insatisfação com seus destemperos, não iria fazer. Quando me aproximei do quarto percebi que roncava. Não havia se banhado no rio, havia deitado sujo do trabalho. Paciência, pensei, não vou acordar a fera para se banhar, é capaz de se voltar contra mim.
No dia seguinte, saiu antes da hora de costume. Não me levantei. Ouvi quando fechou a porta. Ouvi também o trotar do cavalo tomando distância. Só depois levantei e cuidei de tudo; aguei o quintal. Cozinhei fruta-pão. Senti prazer com o cheiro que fumegava na cozinha. Pensei em Maria Cabocla, que tinha ocupado meus pensamentos e minhas rezas antes de dormir. Pedia que ela e as crianças estivessem bem, que tivesse se entendido com o marido. Que Deus amansasse aquele coração, iria pedir para Maria Cabocla que falasse com meu pai, que muitos já haviam se curado da bebida com suas garrafadas e rezas. Que havia encantado pra tudo na vida, então havia encantado para tirar aquele vício do homem. Maria parecia ser mais velha que eu e Bibiana. Não tinha tanta idade quanto minha mãe, mas seu filho maior tinha onze anos, foi o que me disse. Talvez se nos colocassem juntas a tomassem por minha mãe, dada a aparência desgastada de sofrimento.
Tranquei a casa e saí. Segui pelo caminho como se voltasse para casa. Uma sensação boa se apossou de mim, sentia leves arrepios, era como se fosse receber um presente que esperava há muito tempo. Segui reencontrando o que conhecia, as veredas, as casas, o rio, os buritizeiros, um sentimento bom de que se não desse certo com Tobias poderia me dispor a caminhar para regressar à beira do rio Utinga. Sempre restaria a possibilidade de encontrar um lugar conhecido. Ou um novo.
Quando avistei a casa ao longe quase sorri. Torci para que minha mãe não chegasse à porta, queria apanhá-la de surpresa, riríamos juntas, sentaria à mesa para tratar das coisas conhecidas. Iria ouvi-la falando por mim e por ela. Fazendo perguntas e respondendo a si mesma, como se fossem minhas as respostas. Até que eu interviesse, negando. Ia refluindo todos aqueles sentimentos vivos como uma coisa boa que se repete sempre. Bati com os pés devagar na soleira da porta. Ouvi um rumor de vozes, dona Tonha deveria estar por lá, pensei. Quando ultrapassei a porta vi uma mulher sentada, de perfil, com um bebê no colo. Bibiana havia regressado.

Itamar Vieira Junior, in Torto Arado

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