No Cancioneiro da Inconfidência,
Cecília Meireles descreve a desgraça do negro na cata do ouro. Vou
transcrever um pedacinho:
Já se ouve cantar o negro,
Que saudade pela serra!
Os corpos naquelas águas,
As almas por longe terra.
Em cada vida de escravo.
Que surda, perdida guerra!
Faço uma paródia para se aplicar ao meu
pai:
O corpo naqueles campos,
A alma por longes terras...
Meu pai perdera a guerra. Testa coberta
de suor, foice na mão, ele não queria travar uma batalha com a
natureza. Ele não nascera para a agricultura. Não nascera para a
solidão dos pastos. Sua alma viajava por outros lugares. O apito das
locomotivas, o cheiro do carvão, as viagens, o sacolejar do trem
cortando os campos, as estações ferroviárias, os hotéis, a
caderneta quilométrica, e ele fazendo a praça, espalhando palavras
alegres para convencer os fregueses, o retorno à casa depois do
triunfo comercial de cada viagem. Sonhava outra vida.
Essa outra vida começava com as
locomotivas. Sonhava mudar-se para Juiz de Fora e dizia: “Em Juiz
de Fora as rodas das locomotivas são da altura do seu irmão
Ivan...” . Eu me assombrava ao ouvir falar dessas coisas que eu
nunca vira. Ele abria então a Encyclopaedia no volume XI, “K
— Macchabeus”, e me mostrava as fotografias. “Quem inventou a
locomotiva foi um inglês chamado George Stephenson”, ele dizia.
Até que chegou um dia quando ele disse:
“Vamos nos mudar daqui! Vamos nos mudar para Lambari...” . Não
era Juiz de Fora. Para Juiz de Fora o pulo seria muito grande. Era
uma cidadezinha pequena, estação de águas, que tinha trem. Eu não
me lembro direito do dia da mudança. Lembro-me que me acordaram
muito cedo. E eu me espantei ao ver o céu coberto de estrelas. Para
mim, menino, céu coberto de estrelas acontecia à noite, quando se
ia para a cama. Que estranho! Eu estava me levantando, era manhã, e
o céu estava coberto de estrelas!
A mudança foi simples. Não tínhamos
móveis. Tudo o que tínhamos cabia numas poucas canastras. Mais o
piano, naturalmente. A Encyclopaedia. E a Biblioteca
Internacional de Obras Célebres. Umas poucas panelas. Talheres.
Louças. Roupas. E foi assim, com o céu coberto de estrelas e o
horizonte se avermelhando que eu deixei o mundo onde meus
companheiros eram os cavalos, as vacas, as galinhas, os riachinhos e
o menino da mata que conversava comigo e me mudei para um mundo
desconhecido onde corriam trens de ferro movidos a fogo e vapor…
Rubem Alves, in O velho que acordou menino
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