Meu
pai, quando rico, era uma festa. Os amigos eram muitos nos jantares,
nas festas, nas viagens ao Rio. Ficou pobre, os amigos sumiram. A
Cecília Meireles escreveu no Cancioneiro
da Inconfidência: “Quando a desgraça é profunda, que amigo se
compadece?”.
Há dois tipos de pobreza. Primeiro, a pobreza dos pobres que sempre
foram pobres. É uma pobreza natural, que não pede nada, no máximo
uma esmola, um quilo de arroz, uma roupa velha. Roceiro pobre vira
poesia, vira quadro... Segundo, a pobreza daquele que já foi rico.
Essa pobreza é trágica. Acho que é porque o pobre que sempre foi
pobre não tem vergonha da sua pobreza. Mas o pobre que já foi rico
é um homem humilhado. Então, não é só a dor da pobreza. É a dor
da humilhação. Parte da humilhação são os amigos que
desaparecem. Nem o padre, pastor de almas, jamais nos visitou. Camilo
Castelo Branco passou por experiência parecida e escreveu um soneto:
Tinha tido muitos amigos. Julgava-se o mais ditoso dos homens. Mas
chegou a velhice e com ela a desgraça:
Um
dia adoeci profundamente.
Ceguei.
Dos cento e dez houve um somente
Que
não desfez os laços quase rotos.
Que
vamos nós (diziam) lá fazer?
Se
ele está cego, não nos pode ver...
Que
cento e dez impávidos marotos!
Aí
aconteceu uma coisa inesperada. Começou a nos visitar um
desconhecido, o senhor Firmino. Era um evangelista protestante. A
desgraça do meu pai era notícia, assunto de conversa nas esquinas,
chegou a ser manchete do jornal O Estado de Minas. O senhor Firmino
ficou sabendo daquele homem abandonado. Que extraordinária vocação
essa de sair em busca dos solitários e tristes para lhes falar de
Jesus! Não me lembro de nada do que ele falava. Lembro-me dos hinos
bonitos que ele ensinava. Um deles era sobre um homem com sobrenome
estranho, um tal de João Totrono. Só depois de grande descobri que
não se tratava de um homem de sobrenome estranho. O João Totrono
era “Junto
ao trono de Deus, preparado tens, ó Cristão, um lugar para ti...”.
De vez em quando o hino se canta na minha cabeça. E volto à sala
onde o senhor Firmino pregava àquela pequena congregação...
Acho
que foi assim que se iniciou a relação de minha família com o
protestantismo. Não foi conversão, experiência espiritual ou
iluminação. Minha mãe até o fim da vida toda noite rezava a
“Ave-Maria” antes de dormir. E meu pai nunca levou as coisas de
religião a sério. Há pessoas que se convertem por causa de uma
grande experiência espiritual solitária. Outros não se convertem:
apenas se mudam da sua solidão para uma comunidade que os acolha. O
que a comunidade pensa não importa muito. A experiência de
pertencer, de não estar sozinho, é tão gratificante que é capaz
de digerir qualquer ideia
esquisita. Chupado com amigos, o limão é doce. Acho que foi isso
que aconteceu. Primeiro, a presença fiel do senhor Firmino. Depois,
a comunidade maior, os protestantes. Eles tinham uma grande escola em
Lavras, internato famoso para o qual as famílias ricas do Brasil
inteiro enviavam seus filhos e filhas. Mas a relação da minha
família com os protestantes do Instituto Gammon era muito mais
antiga. Mas isso é uma outra estória…
Rubem Alves, in O velho que acordou menino
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