segunda-feira, 5 de julho de 2021

Senhor Firmino

Meu pai, quando rico, era uma festa. Os amigos eram muitos nos jantares, nas festas, nas viagens ao Rio. Ficou pobre, os amigos sumiram. A Cecília Meireles escreveu no Cancioneiro da Inconfidência: “Quando a desgraça é profunda, que amigo se compadece?”. Há dois tipos de pobreza. Primeiro, a pobreza dos pobres que sempre foram pobres. É uma pobreza natural, que não pede nada, no máximo uma esmola, um quilo de arroz, uma roupa velha. Roceiro pobre vira poesia, vira quadro... Segundo, a pobreza daquele que já foi rico. Essa pobreza é trágica. Acho que é porque o pobre que sempre foi pobre não tem vergonha da sua pobreza. Mas o pobre que já foi rico é um homem humilhado. Então, não é só a dor da pobreza. É a dor da humilhação. Parte da humilhação são os amigos que desaparecem. Nem o padre, pastor de almas, jamais nos visitou. Camilo Castelo Branco passou por experiência parecida e escreveu um soneto: Tinha tido muitos amigos. Julgava-se o mais ditoso dos homens. Mas chegou a velhice e com ela a desgraça:

Um dia adoeci profundamente.
Ceguei. Dos cento e dez houve um somente
Que não desfez os laços quase rotos.

Que vamos nós (diziam) lá fazer?
Se ele está cego, não nos pode ver...
Que cento e dez impávidos marotos!

Aí aconteceu uma coisa inesperada. Começou a nos visitar um desconhecido, o senhor Firmino. Era um evangelista protestante. A desgraça do meu pai era notícia, assunto de conversa nas esquinas, chegou a ser manchete do jornal O Estado de Minas. O senhor Firmino ficou sabendo daquele homem abandonado. Que extraordinária vocação essa de sair em busca dos solitários e tristes para lhes falar de Jesus! Não me lembro de nada do que ele falava. Lembro-me dos hinos bonitos que ele ensinava. Um deles era sobre um homem com sobrenome estranho, um tal de João Totrono. Só depois de grande descobri que não se tratava de um homem de sobrenome estranho. O João Totrono era “Junto ao trono de Deus, preparado tens, ó Cristão, um lugar para ti...”. De vez em quando o hino se canta na minha cabeça. E volto à sala onde o senhor Firmino pregava àquela pequena congregação...
Acho que foi assim que se iniciou a relação de minha família com o protestantismo. Não foi conversão, experiência espiritual ou iluminação. Minha mãe até o fim da vida toda noite rezava a “Ave-Maria” antes de dormir. E meu pai nunca levou as coisas de religião a sério. Há pessoas que se convertem por causa de uma grande experiência espiritual solitária. Outros não se convertem: apenas se mudam da sua solidão para uma comunidade que os acolha. O que a comunidade pensa não importa muito. A experiência de pertencer, de não estar sozinho, é tão gratificante que é capaz de digerir qualquer ideia esquisita. Chupado com amigos, o limão é doce. Acho que foi isso que aconteceu. Primeiro, a presença fiel do senhor Firmino. Depois, a comunidade maior, os protestantes. Eles tinham uma grande escola em Lavras, internato famoso para o qual as famílias ricas do Brasil inteiro enviavam seus filhos e filhas. Mas a relação da minha família com os protestantes do Instituto Gammon era muito mais antiga. Mas isso é uma outra estória…

Rubem Alves, in O velho que acordou menino

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