sábado, 17 de julho de 2021

Frida...

 


Frida olha para os vereadores da Câmara de Porto Alegre. E não acredita no que vê. Nem no que ouve. Contrai o olho doente, caído, e aperta as bochechas com as mãos. Grita, com forte sotaque alemão:
Não aguento mais. Mas que coisa horrível! Só fazem projetos que não prestam.
E ameaça bandear-se para a Câmara de Novo Hamburgo, no Vale dos Sinos, por onde também já andou. Cansada, diz ela, de tanta besteira.
Frida é assim. Aos 68 anos, diz o que muitos apenas pensam. Sua primeira aparição na Câmara de Porto Alegre data dos anos 60. Quando a Câmara ainda funcionava no centro. Desde lá, Frida tornou-se a cidadã mais assídua do Legislativo da capital gaúcha.
De certo modo, não se concebe a Câmara sem Frida. Nem Frida sem a Câmara. Mas quem é Frida? Bem, sempre que alguém não se encaixa no mundo da maioria, é logo chamado de maluco. É o que acontece com Frida. É o que dizem dela quando grita lá do plenário:
Esses vereadores só dizem bobagem! E sabe quanto ganham? Quase R$ 5 mil! Eu vou embora!
Nessa hora, todo mundo acorda e ri. Porque uma sessão da Câmara, com exceção dos projetos polêmicos, é um sono só. Tem sempre alguém discursando para ninguém, uma turma conversando de frente para a tribuna – “viste o Grêmio ontem?” – e outra conversando de costas para a tribuna. Prestando atenção, só a Frida. Com as duas mãos alicerçando as bochechas. Apavorada. Aí, dizem que é a Frida que não bate bem das ideias.
Frida tornou-se Frida na Câmara de Vereadores. Antes, chamava-se Nilsa Lydia Hartmann. Filha de agricultores do município de Harmonia. Costureira de mão cheia, um dedo mágico também para plantas e flores. Mãe de seis filhos. Casada com um marceneiro e depois separada. Perseguida por um diagnóstico médico: esquizofrenia. Poderia ter sido confinada em um manicômio. Ou ficar esperando a vida acabar em uma clínica. Preferiu inventar a Frida. E, de algum modo, a família compreendeu. Num mundo que se especializou em esmagar, eliminar e encarcerar a diferença, o melhor para Nilsa era ser Frida. E a deixaram à vontade.
Se o que Frida compreendeu é coisa de doido, muita gente anda batendo pino. Frida entendeu que o Legislativo é a sua casa. Interpretou o conceito de cidadania de uma forma tão radical que mais de uma vez foram avistadas suas calcinhas recém-lavadas estendidas sobre as folhagens do jardim. Como às vezes dorme na rua, ela faz uma rápida toalete no banheiro dos motoristas. É também pelos corredores da Câmara que remenda roupas e tricota sapatinhos de lã.
Frida cumpre expediente. Ela gostaria de ser vereadora. Resignou-se em ser jornalista. Considera-se repórter da assessoria de imprensa da Câmara. Anda com um punhado de canetas numa mão e um maço de papéis usados na outra. Quase não perde sessão. Se falta algum dia, no outro já pede atestado. Houve tempo em que batia ponto. Senta-se no plenário e escreve sem parar. Conta o que acontece, faz comentários e críticas. Vai espalhando as laudas pelas cadeiras e degraus do plenário. Às vezes, abandona a isenção jornalística e prepara um projeto de lei para doar malotes de dinheiro aos amigos. Ninguém imagina onde Frida viu algo parecido.
Às vezes Frida se irrita, e já houve caso de invadir a tribuna empunhando um porrete. Numa ocasião, disparou uma bala de açúcar direto na careca de um vereador, mas o petardo acabou acertando a calva de outro. No caso de Frida, dizem que é maluquice. Mas quem acompanha a história da Câmara sabe que, mais de uma vez, os nobres edis já decidiram uma discórdia em batalhas campais com copos de cafezinho.
Frida já levou até a mãe para que conhecesse seu local de trabalho. Ciceroneou a velhinha toda orgulhosa pelos corredores do Legislativo. Mais tarde, quando a mulher faleceu, fez um altar no plenário. Com fotografia, vela e vasinho de flores. Frida fez o luto pela mãe na casa do povo.
O grande drama da Frida é que, apesar de ser uma das funcionárias mais antigas, assíduas e dedicadas, nunca recebe salário. Os dias que antecedem ao pagamento são sempre nervosos. Frida se agita. Chega a ficar agressiva. Na data fatídica, revolta-se. Toda vez que uma funcionária ingressa no setor, sente-se preterida. Hostiliza a novata, deixa bilhetes: “Cai fora!”.
Mesmo assim, Frida segue agarrada ao fio da existência. Quando se despede do filho, em Novo Hamburgo, sempre diz:
Hoje acho que votam o meu dinheiro.
E ruma para Porto Alegre. Tal qual o povo, cheia de convicção na democracia.

... E UM CERTO VEREADOR

Ele não gosta. Procurado, quase não quis falar no assunto. Contou um ou outro episódio, em seguida implorou para não ser citado. Mas o que fazer? É só tocar no nome da Frida que imediatamente alguém lembra de uma história do Dib. Ou do “Dibas”, como ela diz. Feita a ressalva, o nobre vereador vai ter de perdoar, mas é impossível contar a história da Frida sem citar seu nome. Seria o mesmo que contar a história de Dalila sem Sansão. Cleópatra sem Marco Antônio. Julieta sem o seu Romeu.
Frida teve mais de um amor platônico entre os parlamentares, mas o sentimento dedicado a Dib é diferente. Duradouro, vem atravessando as décadas, as sete legislaturas do vereador. Já gerou mais de uma especulação pelos corredores da Câmara. Houve um tempo em que Frida chegou a construir uma casa de madeira no canteiro da rua Ramiro Barcelos, em frente ao apartamento em que ele morava. Só para ficar mais perto do vereador de seus sonhos. Em outra ocasião, conseguiu uma escada, escalou a parede e, quando Dib abriu a porta, Frida estava bem sentada no sofá da sala.
Quando Dib era secretário dos Transportes, Frida um dia invadiu o gabinete e surrupiou uma foto dele de dentro da pasta. No lugar, deixou uma carta de conteúdo irrevelado. Dib chamou a Polícia Militar. Quando os soldados passaram por Frida, ela informou bem depressa:
A mulher foi por ali.
Quando Dib foi secretário de Obras e Viação do município – ô homem mais diligente! –, Frida fazia comida na rua, espalhava as panelinhas e gritava:
Dibas! Dibas! Comidinha para ti.
Para tristeza da Frida, Dib nunca compareceu ao banquete. E, num de seus aniversários, cometeu uma indelicadeza. Quando Frida levou-lhe um bolo feito por suas próprias mãos, despedaçou o merengue a bengaladas.
Com o passar dos anos – e o repúdio constante dos mais sinceros anseios de Frida –, a relação foi se azedando. Hoje, Frida culpa Dib por tudo de ruim que lhe aconteceu na vida. Inclusive o justo salário do qual nunca viu a cor. Mesmo assim, não consegue ficar longe dele. João Dib segue sendo a estrela de suas reportagens. Volta e meia, Frida ainda sucumbe ao coração e grita do plenário:
Deixem o Dibas falar!!!

Eliane Brum, in A vida que ninguém vê

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