Frida olha para os vereadores da Câmara
de Porto Alegre. E não acredita no que vê. Nem no que ouve. Contrai
o olho doente, caído, e aperta as bochechas com as mãos. Grita, com
forte sotaque alemão:
– Não aguento mais. Mas que coisa
horrível! Só fazem projetos que não prestam.
E ameaça bandear-se para a Câmara de
Novo Hamburgo, no Vale dos Sinos, por onde também já andou.
Cansada, diz ela, de tanta besteira.
Frida é assim. Aos 68 anos, diz o que
muitos apenas pensam. Sua primeira aparição na Câmara de Porto
Alegre data dos anos 60. Quando a Câmara ainda funcionava no centro.
Desde lá, Frida tornou-se a cidadã mais assídua do Legislativo da
capital gaúcha.
De certo modo, não se concebe a Câmara
sem Frida. Nem Frida sem a Câmara. Mas quem é Frida? Bem, sempre
que alguém não se encaixa no mundo da maioria, é logo chamado de
maluco. É o que acontece com Frida. É o que dizem dela quando grita
lá do plenário:
– Esses vereadores só dizem bobagem! E
sabe quanto ganham? Quase R$ 5 mil! Eu vou embora!
Nessa hora, todo mundo acorda e ri.
Porque uma sessão da Câmara, com exceção dos projetos polêmicos,
é um sono só. Tem sempre alguém discursando para ninguém, uma
turma conversando de frente para a tribuna – “viste o Grêmio
ontem?” – e outra conversando de costas para a tribuna. Prestando
atenção, só a Frida. Com as duas mãos alicerçando as bochechas.
Apavorada. Aí, dizem que é a Frida que não bate bem das ideias.
Frida tornou-se Frida na Câmara de
Vereadores. Antes, chamava-se Nilsa Lydia Hartmann. Filha de
agricultores do município de Harmonia. Costureira de mão cheia, um
dedo mágico também para plantas e flores. Mãe de seis filhos.
Casada com um marceneiro e depois separada. Perseguida por um
diagnóstico médico: esquizofrenia. Poderia ter sido confinada em um
manicômio. Ou ficar esperando a vida acabar em uma clínica.
Preferiu inventar a Frida. E, de algum modo, a família compreendeu.
Num mundo que se especializou em esmagar, eliminar e encarcerar a
diferença, o melhor para Nilsa era ser Frida. E a deixaram à
vontade.
Se o que Frida compreendeu é coisa de
doido, muita gente anda batendo pino. Frida entendeu que o
Legislativo é a sua casa. Interpretou o conceito de cidadania de uma
forma tão radical que mais de uma vez foram avistadas suas calcinhas
recém-lavadas estendidas sobre as folhagens do jardim. Como às
vezes dorme na rua, ela faz uma rápida toalete no banheiro dos
motoristas. É também pelos corredores da Câmara que remenda roupas
e tricota sapatinhos de lã.
Frida cumpre expediente. Ela gostaria de
ser vereadora. Resignou-se em ser jornalista. Considera-se repórter
da assessoria de imprensa da Câmara. Anda com um punhado de canetas
numa mão e um maço de papéis usados na outra. Quase não perde
sessão. Se falta algum dia, no outro já pede atestado. Houve tempo
em que batia ponto. Senta-se no plenário e escreve sem parar. Conta
o que acontece, faz comentários e críticas. Vai espalhando as
laudas pelas cadeiras e degraus do plenário. Às vezes, abandona a
isenção jornalística e prepara um projeto de lei para doar malotes
de dinheiro aos amigos. Ninguém imagina onde Frida viu algo
parecido.
Às vezes Frida se irrita, e já houve
caso de invadir a tribuna empunhando um porrete. Numa ocasião,
disparou uma bala de açúcar direto na careca de um vereador, mas o
petardo acabou acertando a calva de outro. No caso de Frida, dizem
que é maluquice. Mas quem acompanha a história da Câmara sabe que,
mais de uma vez, os nobres edis já decidiram uma discórdia em
batalhas campais com copos de cafezinho.
Frida já levou até a mãe para que
conhecesse seu local de trabalho. Ciceroneou a velhinha toda
orgulhosa pelos corredores do Legislativo. Mais tarde, quando a
mulher faleceu, fez um altar no plenário. Com fotografia, vela e
vasinho de flores. Frida fez o luto pela mãe na casa do povo.
O grande drama da Frida é que, apesar de
ser uma das funcionárias mais antigas, assíduas e dedicadas, nunca
recebe salário. Os dias que antecedem ao pagamento são sempre
nervosos. Frida se agita. Chega a ficar agressiva. Na data fatídica,
revolta-se. Toda vez que uma funcionária ingressa no setor, sente-se
preterida. Hostiliza a novata, deixa bilhetes: “Cai fora!”.
Mesmo assim, Frida segue agarrada ao fio
da existência. Quando se despede do filho, em Novo Hamburgo, sempre
diz:
– Hoje acho que votam o meu dinheiro.
E ruma para Porto Alegre. Tal qual o
povo, cheia de convicção na democracia.
... E UM CERTO VEREADOR
Ele não gosta. Procurado, quase não
quis falar no assunto. Contou um ou outro episódio, em seguida
implorou para não ser citado. Mas o que fazer? É só tocar no nome
da Frida que imediatamente alguém lembra de uma história do Dib. Ou
do “Dibas”, como ela diz. Feita a ressalva, o nobre vereador vai
ter de perdoar, mas é impossível contar a história da Frida sem
citar seu nome. Seria o mesmo que contar a história de Dalila sem
Sansão. Cleópatra sem Marco Antônio. Julieta sem o seu Romeu.
Frida teve mais de um amor platônico
entre os parlamentares, mas o sentimento dedicado a Dib é diferente.
Duradouro, vem atravessando as décadas, as sete legislaturas do
vereador. Já gerou mais de uma especulação pelos corredores da
Câmara. Houve um tempo em que Frida chegou a construir uma casa de
madeira no canteiro da rua Ramiro Barcelos, em frente ao apartamento
em que ele morava. Só para ficar mais perto do vereador de seus
sonhos. Em outra ocasião, conseguiu uma escada, escalou a parede e,
quando Dib abriu a porta, Frida estava bem sentada no sofá da sala.
Quando Dib era secretário dos
Transportes, Frida um dia invadiu o gabinete e surrupiou uma foto
dele de dentro da pasta. No lugar, deixou uma carta de conteúdo
irrevelado. Dib chamou a Polícia Militar. Quando os soldados
passaram por Frida, ela informou bem depressa:
– A mulher foi por ali.
Quando Dib foi secretário de Obras e
Viação do município – ô homem mais diligente! –, Frida fazia
comida na rua, espalhava as panelinhas e gritava:
– Dibas! Dibas! Comidinha para ti.
Para tristeza da Frida, Dib nunca
compareceu ao banquete. E, num de seus aniversários, cometeu uma
indelicadeza. Quando Frida levou-lhe um bolo feito por suas próprias
mãos, despedaçou o merengue a bengaladas.
Com o passar dos anos – e o repúdio
constante dos mais sinceros anseios de Frida –, a relação foi se
azedando. Hoje, Frida culpa Dib por tudo de ruim que lhe aconteceu na
vida. Inclusive o justo salário do qual nunca viu a cor. Mesmo
assim, não consegue ficar longe dele. João Dib segue sendo a
estrela de suas reportagens. Volta e meia, Frida ainda sucumbe ao
coração e grita do plenário:
– Deixem o Dibas falar!!!
Eliane Brum, in A vida que ninguém vê
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