sábado, 17 de julho de 2021

Recados das cartas

Eu espichava meus ouvidos de criança para escutar os recados das cartas espalhadas sobre sua mesa. A vizinha do lado esquerdo da rua previa destinos. Uma dama de paus junto ao valete de espada indicava amor imprevisto.
O rei de ouros predizia fortuna interrompida pelo ás de copas. O valete de ouros revelava uma traição, seguida de perdão. A cartomante anunciava viagens por terras longes. Eu ensaiava adivinhar o obscuro filtrado pelas frestas das janelas. As cartas nunca revelariam meu escondido amor.
Ao transbordar a vida se faz lágrima e rola salgando o passado morto, mudo, que dorme no canto da boca. Não há condimento capaz de temperar o futuro. Só se salga a carne morta. O depois não tem pressa e chega em seu tempo, seco e frio. O pranto acontecia pela intensidade dos porquês. Não há merecimento ao sofrer por falta de explicações. A vida nos espia para creditar mais culpas. Tudo era claro e sem exigências de respostas: o tomate, o pai, a madrasta, a faca, os irmãos.
Matriculado na escola me vi diante de imenso oceano. Para vencê-lo, só com muitas palavras. Na margem — entre rendas de areias — as palavras eram meu barco. Com elas atravessaria as ondas, venceria as calmarias, aportaria em outras terras. Se era meu barco, eram também meus remos. Com elas cortava as águas, flutuava sobre marés e me via em poesia.

Bartolomeu Campos de Queirós, in Vermelho Amargo

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