Desde cedo, pessoas negras são levadas a
refletir sobre sua condição racial. O início da vida escolar foi
para mim o divisor de águas: por volta dos seis anos entendi que ser
negra era um problema para a sociedade. Até então, no convívio
familiar, com meus pais e irmãos, eu não era questionada dessa
forma, me sentia amada e não via nenhum problema comigo: tudo era
“normal”. “Neguinha do cabelo duro”, “neguinha feia”
foram alguns dos xingamentos que comecei a escutar. Ser a diferente—o
que quer dizer não branca—passou a ser apontado como um defeito.
Comecei a ter questões de autoestima, fiquei mais introspectiva e
cabisbaixa. Fui forçada a entender o que era racismo e a querer me
adaptar para passar despercebida. Como diz a pesquisadora Joice
Berth: “Não me descobri negra, fui acusada de sê-la”.
O mundo apresentado na escola era o dos
brancos, no qual as culturas europeias eram vistas como superiores, o
ideal a ser seguido. Eu reparava que minhas colegas brancas não
precisavam pensar o lugar social da branquitude, pois eram vistas
como normais: a errada era eu. Crianças negras não podem ignorar as
violências cotidianas, enquanto as brancas, ao enxergarem o mundo a
partir de seus lugares sociais—que é um lugar de privilégio—acabam
acreditando que esse é o único mundo possível.
Essa divisão social existe há séculos,
e é exatamente a falta de reflexão sobre o tema que constitui uma
das bases para a perpetuação do sistema de discriminação racial.
Por ser naturalizado, esse tipo de violência se torna comum. Ainda
que uma pessoa branca tenha atributos morais positivos—por exemplo,
que seja gentil com pessoas negras —, ela não só se beneficia da
estrutura racista como muitas vezes, mesmo sem perceber, compactua
com a violência racial.
Como muitas pessoas negras que circulam
em espaços de poder, já fui “confundida” com copeira, faxineira
ou, no caso de hotéis de luxo, prostituta. Obviamente não estou
questionando a dignidade dessas profissões, mas o porquê de pessoas
negras se verem reduzidas a determinados estereótipos, em vez de
serem reconhecidas como seres humanos em toda a sua complexidade e
com suas contradições. Meu irmão mais velho tocou trompete por
muitos anos, fazendo inclusive parte da Sinfônica de Cubatão, na
Baixada Santista. Toda vez que dizia ser músico, perguntavam se ele
tocava pandeiro ou outro instrumento relacionado ao samba. Não teria
problema se ele tocasse, a questão é pensar que homens negros só
podem ocupar esse lugar. Simone de Beauvoir afirmava que não há
crime maior do que destituir um ser humano de sua própria
humanidade, reduzindo-o à condição de objeto.
Dessa mesma premissa deriva o imperativo
de não tratar pessoas negras com condescendência. Lembro que uma
vez, quando trabalhava como secretária numa empresa do porto de
Santos, e fiz algo bastante corriqueiro: respondi a um e-mail. Fiquei
surpresa ao ver a reação de alguns colegas, que me aplaudiram por
eu ter escrito bem um texto. Eu havia cursado três anos de
jornalismo, já tinha publicado artigos em revistas e jornais,
portanto um e-mail não era motivo para aplausos.
Quando eu cursava filosofia, um colega se
mostrou muito surpreso por eu ter tirado uma nota maior que a dele
num trabalho e sugeriu que era porque o professor gostava de mim.
Outro colega insinuou que me daria a parte mais fácil de um trabalho
“para me ajudar”. Experiências desse tipo me fizeram compreender
que elogios podem significar condescendência.
Não é realista esperar que um grupo
racial domine toda a produção do saber e seja a única referência
estética. Por causa disso, a população negra criou estratégias ao
longo de sua história para superar essa marginalização. O
conhecido movimento Panteras Negras, do qual a ativista e filósofa
Angela Davis fez parte, além de lutar contra a segregação racial
nos Estados Unidos e pela emancipação do povo negro, tinha também
em suas bases a valorização da estética negra. Kathleen Cleaver,
uma das lideranças do movimento, aponta para a importância de que
pessoas negras quebrem com a visão de que somente pessoas brancas
são bonitas, valorizando o cabelo natural e as características
típicas do povo negro e criando para ele uma nova consciência.
No campo das artes, temos experiências
notáveis realizadas pela população negra no Brasil, mas,
infelizmente, ainda pouco conhecidas. O Teatro Experimental do Negro
(TEN), criado por Abdias do Nascimento em 1944, buscou valorizar a
cultura afro-brasileira por meio da educação e da arte, formulando
uma estética própria para além da reprodução da experiência de
outros países e visando ao protagonismo do povo negro. Assim, tinha
como bandeira “priorizar a valorização da personalidade e cultura
específicas ao negro como caminho de combate ao racismo”.1 De lá,
saíram nomes como o da atriz Ruth de Souza, que nos deixou, aos 98
anos, em julho de 2019.
Há outros bons exemplos de iniciativas
que ampliam a visibilidade negra nas artes. A série Cadernos Negros,
criada em 1978, foi responsável por publicar contos e poemas de
escritores e escritoras negros, tornando-se um marco para a produção
literária negra. Muitos dos primeiros textos de Conceição Evaristo
foram publicados lá, por exemplo. O projeto Amazônia Negra, da
fotógrafa Marcela Bonfim, busca reconhecer e valorizar as culturas
negras em Rondônia. Bonfim sintetiza a importância de iniciativas
desse tipo: “A maioria dos negros brasileiros precisa aprender a
ser negro no percurso de suas vidas”. Projetos assim contribuem
para esse aprendizado.
É importante ter em mente que para
pensar soluções para uma realidade, devemos tirá-la da
invisibilidade. Portanto, frases como “eu não vejo cor” não
ajudam. O problema não é a cor, mas seu uso como justificativa para
segregar e oprimir. Vejam cores, somos diversos e não há nada de
errado nisso—se vivemos relações raciais, é preciso falar sobre
negritude e também sobre branquitude.
Djamila Ribeiro, in Pequeno manual antirracista
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