sexta-feira, 2 de julho de 2021

Enxergue a negritude

Desde cedo, pessoas negras são levadas a refletir sobre sua condição racial. O início da vida escolar foi para mim o divisor de águas: por volta dos seis anos entendi que ser negra era um problema para a sociedade. Até então, no convívio familiar, com meus pais e irmãos, eu não era questionada dessa forma, me sentia amada e não via nenhum problema comigo: tudo era “normal”. “Neguinha do cabelo duro”, “neguinha feia” foram alguns dos xingamentos que comecei a escutar. Ser a diferente—o que quer dizer não branca—passou a ser apontado como um defeito. Comecei a ter questões de autoestima, fiquei mais introspectiva e cabisbaixa. Fui forçada a entender o que era racismo e a querer me adaptar para passar despercebida. Como diz a pesquisadora Joice Berth: “Não me descobri negra, fui acusada de sê-la”.
O mundo apresentado na escola era o dos brancos, no qual as culturas europeias eram vistas como superiores, o ideal a ser seguido. Eu reparava que minhas colegas brancas não precisavam pensar o lugar social da branquitude, pois eram vistas como normais: a errada era eu. Crianças negras não podem ignorar as violências cotidianas, enquanto as brancas, ao enxergarem o mundo a partir de seus lugares sociais—que é um lugar de privilégio—acabam acreditando que esse é o único mundo possível.
Essa divisão social existe há séculos, e é exatamente a falta de reflexão sobre o tema que constitui uma das bases para a perpetuação do sistema de discriminação racial. Por ser naturalizado, esse tipo de violência se torna comum. Ainda que uma pessoa branca tenha atributos morais positivos—por exemplo, que seja gentil com pessoas negras —, ela não só se beneficia da estrutura racista como muitas vezes, mesmo sem perceber, compactua com a violência racial.
Como muitas pessoas negras que circulam em espaços de poder, já fui “confundida” com copeira, faxineira ou, no caso de hotéis de luxo, prostituta. Obviamente não estou questionando a dignidade dessas profissões, mas o porquê de pessoas negras se verem reduzidas a determinados estereótipos, em vez de serem reconhecidas como seres humanos em toda a sua complexidade e com suas contradições. Meu irmão mais velho tocou trompete por muitos anos, fazendo inclusive parte da Sinfônica de Cubatão, na Baixada Santista. Toda vez que dizia ser músico, perguntavam se ele tocava pandeiro ou outro instrumento relacionado ao samba. Não teria problema se ele tocasse, a questão é pensar que homens negros só podem ocupar esse lugar. Simone de Beauvoir afirmava que não há crime maior do que destituir um ser humano de sua própria humanidade, reduzindo-o à condição de objeto.
Dessa mesma premissa deriva o imperativo de não tratar pessoas negras com condescendência. Lembro que uma vez, quando trabalhava como secretária numa empresa do porto de Santos, e fiz algo bastante corriqueiro: respondi a um e-mail. Fiquei surpresa ao ver a reação de alguns colegas, que me aplaudiram por eu ter escrito bem um texto. Eu havia cursado três anos de jornalismo, já tinha publicado artigos em revistas e jornais, portanto um e-mail não era motivo para aplausos.
Quando eu cursava filosofia, um colega se mostrou muito surpreso por eu ter tirado uma nota maior que a dele num trabalho e sugeriu que era porque o professor gostava de mim. Outro colega insinuou que me daria a parte mais fácil de um trabalho “para me ajudar”. Experiências desse tipo me fizeram compreender que elogios podem significar condescendência.

Não é realista esperar que um grupo racial domine toda a produção do saber e seja a única referência estética. Por causa disso, a população negra criou estratégias ao longo de sua história para superar essa marginalização. O conhecido movimento Panteras Negras, do qual a ativista e filósofa Angela Davis fez parte, além de lutar contra a segregação racial nos Estados Unidos e pela emancipação do povo negro, tinha também em suas bases a valorização da estética negra. Kathleen Cleaver, uma das lideranças do movimento, aponta para a importância de que pessoas negras quebrem com a visão de que somente pessoas brancas são bonitas, valorizando o cabelo natural e as características típicas do povo negro e criando para ele uma nova consciência.
No campo das artes, temos experiências notáveis realizadas pela população negra no Brasil, mas, infelizmente, ainda pouco conhecidas. O Teatro Experimental do Negro (TEN), criado por Abdias do Nascimento em 1944, buscou valorizar a cultura afro-brasileira por meio da educação e da arte, formulando uma estética própria para além da reprodução da experiência de outros países e visando ao protagonismo do povo negro. Assim, tinha como bandeira “priorizar a valorização da personalidade e cultura específicas ao negro como caminho de combate ao racismo”.1 De lá, saíram nomes como o da atriz Ruth de Souza, que nos deixou, aos 98 anos, em julho de 2019.
Há outros bons exemplos de iniciativas que ampliam a visibilidade negra nas artes. A série Cadernos Negros, criada em 1978, foi responsável por publicar contos e poemas de escritores e escritoras negros, tornando-se um marco para a produção literária negra. Muitos dos primeiros textos de Conceição Evaristo foram publicados lá, por exemplo. O projeto Amazônia Negra, da fotógrafa Marcela Bonfim, busca reconhecer e valorizar as culturas negras em Rondônia. Bonfim sintetiza a importância de iniciativas desse tipo: “A maioria dos negros brasileiros precisa aprender a ser negro no percurso de suas vidas”. Projetos assim contribuem para esse aprendizado.
É importante ter em mente que para pensar soluções para uma realidade, devemos tirá-la da invisibilidade. Portanto, frases como “eu não vejo cor” não ajudam. O problema não é a cor, mas seu uso como justificativa para segregar e oprimir. Vejam cores, somos diversos e não há nada de errado nisso—se vivemos relações raciais, é preciso falar sobre negritude e também sobre branquitude.

Djamila Ribeiro, in Pequeno manual antirracista

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