quarta-feira, 14 de julho de 2021

Conversa com um amigo

Hoje chove lentamente, e o céu se une a terra com uma ternura infinita. Lembro de um baixo-relevo hindu, em pedra cinza-escura: um homem está com os braços em torno de uma mulher e se une a ela com tanta doçura e resignação que se tem a impressão, o tempo tendo gastado e quase corroído os corpos, de se estar vendo dois insetos estreitamente enlaçado sobre os quais cai uma garoa que a terra absorve, voluptuosamente e sem pressa.
Estou sentado no barracão. Olho o céu se escurecer e o mar reluzir com um brilho cinza-verde. De um lado a outro da praia, nem um homem, nem uma vela, nem um pássaro. O cheiro da terra entra sozinho pela janela aberta.
Levantei-me e estendi a mão para a chuva como um mendigo.
De repente, tive vontade de chorar. Uma tristeza, não por mim, não minha, mais profunda, mais obscura, subia da terra molhada. O pânico que deve assaltar o animal que pasta despreocupado, e que, de repente, sem nada ver, fareja em torno de si, no ar, que ele está bloqueado e não pode escapar.
Estive a ponto de dar um grito, sabendo que isso me aliviaria, mas tive vergonha.
O céu baixava cada vez mais. Olhava pela janela; meu coração tremia docemente.
Voluptuosas, totalmente tristes, são as horas de chuva fina. Ao espírito voltam todas as recordações amargas, sepultadas no coração — separação de amigos, sorrisos de mulheres já apagados, esperanças que perderam suas asas, como borboleta às quais não resta senão o verme. E esse verme está pousado sobre as folhas de meu coração e as rói.
Pouco a pouco, através da chuva e da terra molhada, subiu de novo a saudade de meu amigo, exilado lá longe, no Cáucaso. Tomei minha pena, debrucei-me sobre o papel, pus-me a falar com ele, para romper a malha de chuva e respirar.
Meu querido, escrevo-lhe de uma praia solitária de Creta onde combinados, o destino e eu, que eu ficaria alguns meses a brincar de capitalista, de proprietário de uma mina de linhita, de homem de negócios. Se a brincadeira der certo, então lhe direi que não era brincadeira, mas que tomara uma decisão grave: a de mudar de vida.
Você se lembra, na hora de partir você me chamou “camundongo roedor de papiros”. Então, despeitado, decidi abandonar as papeladas por algum tempo — ou para sempre — e atirar-me à ação. Aluguei uma pequena colina que tem linhita, contratei operários, comprei picaretas, pás, lâmpadas de acetileno, cestas, vagões, furei galerias e meto-me dentro delas. Tudo isso para enfurecer você. E de camundongo papívoro, à força de abrir corredores na terra, transformei-me em toupeira. Espero que você aprove a metamorfose.
Minhas alegrias aqui são muito grandes porque muito simples, feitas de elementos eternos: ar puro, sol, mar, pão. De noite, sentado à turca diante de mim, um extraordinário Simbad o Marujo fala; fala e o mundo se alarga. Algumas vezes, quando a palavra não é suficiente, ele se ergue e dança. E quando a própria dança não lhe é suficiente, pousa o santuri sobre seus joelhos e toca.
Ora é uma melodia selvagem e dá uma sensação de sufocamento, porque se compreende bruscamente que a vida é insípida e miserável, indigna do homem. Ora é uma música dolorosa, e sente-se que a vida passa e se esvai como areia entre os dedos, e que não há salvação.
Meu coração vai de um lado para o outro em meu peito, como uma lançadeira de tecelão. Ele tece esses meses que vou passar em Creta, e — Deus me perdoe — creio que sou feliz.
Confúcio disse: “Muitos procuram a felicidade acima do homem, outros mais abaixo. Mas, a felicidade é exatamente do tamanho do homem.” É certo. Existem, portanto, tantas felicidades quantos tamanhos há de homem. Tal é, meu caro aluno e professor, a minha felicidade de hoje: eu a meço e torno a medir, inquieto, para saber qual é agora o meu tamanho. Porque, você sabe melhor que eu, o tamanho do homem nunca é o mesmo.
Os homens, vistos de minha solidão, aqui, aparecem-me não como formigas, mas, ao contrário, como monstros enormes, dinossauros e pterodátilos, vivendo numa atmosfera saturada de ácido carbônico e de podridão cosmogônica. Uma selva incompreensível, absurda e lamentável. As noções de pátria e de raça que você gosta, as noções de superpátria e de humanidade que me seduziram, adquirem o mesmo valor diante do sopro todo-poderoso da destruição. Sentimos que estamos aqui para dizer algumas sílabas, e às vezes nem sílabas, mas sons inarticulados, um “a”! Um “o”! — depois do que nos partimos em pedaços. E as ideias mais elevadas, mesmo se lhe abrimos o ventre, vemos que são, também elas, bonecas enchidas com serragem, e escondida na serragem encontramos uma mola de lata.
Você bem sabe que essas meditações cruéis, longe de me fazerem desistir, são, ao contrário, combustíveis indispensáveis a minha chama interior. Porque, como disse o meu mestre Buda, “eu vi”. E tendo visto, e tendo trocado uma piscadela de olhos com o invisível diretor do espetáculo, cheio de bom humor e fantasia, posso daqui por diante representar até o fim, quer dizer, com coerência e sem desfalecimentos, o meu papel na terra. Pois, tendo visto, colaborei também na obra que represento no palco de Deus.
E é assim que, percorrendo com os olhos o cenário universal, eu vejo você lá longe, nas furnas legendárias do Cáucaso, representar também o seu papel; você se esforça em salvar milhares de almas de nossa raça que estão em perigo mortal. Pseudo-prometeu, mas que deve sofrer martírios bem reais combatendo forças obscuras; a fome, a doença, a morte. Mas você, orgulhoso como é, deve se alegrar que as forças obscuras sejam tão numerosas e invisíveis: assim o seu desejo de ser quase sem esperança será mais heroico, e sua alma adquire uma grandeza mais trágica.
Essa vida que você leva, você a considera, certamente, como uma felicidade. E porque assim a considera, assim ela é. Você também cortou sua felicidade ao seu tamanho; e seu tamanho nesse momento — Deus seja louvado, é maior que o meu.
O bom mestre não quer recompensa mais brilhante do que essa: formar um aluno que o ultrapassa.
Por mim, eu esqueço frequentemente, eu me desvio, me perco, minha fé é um mosaico de incredulidade; tenho vontade de fazer uma troca: tomar um pequeno minuto e dar toda a minha vida. Mas você segura firmemente o leme e não esquece, mesmo nos mais doces instantes mortais, sobre que rumo apontou sua proa.
Você se lembra daquele dia em que atravessamos os dois a Itália de volta à Grécia? Havíamos resolvido ir à região do ponto, então em perigo, você se lembra? Numa aldeia descemos às pressas do trem — tínhamos apenas uma hora antes da chegada do outro trem. Entramos em um grande jardim viçoso, perto da estação: árvores de folhas largas, bananeiras, juncos de sóbrias cores metálicas, abelhas agarradas a um galho florido que tremia, feliz de as ver mamar.
Nos íamos mudos, em êxtase, como num sonho. Subitamente, a uma volta da aldeia florida, duas jovens apareceram, lendo e caminhando. Não me lembro mais se eram bonitas ou feias. Lembro-me apenas que uma era loura e a outra morena, e que as duas usavam vestidos primaveris.
E com a audácia que só se tem em sonho, nós nos aproximamos delas e você lhes disse rindo: “Não importa que livros vocês estejam lendo, vamos discuti-lo.” Elas liam Gorki. Então às pressas porque não tínhamos tempo, nós nos pusemos a falar da vida, da miséria, da revolta da alma, do amor...
Não esquecerei jamais nossa alegria e nossa dor. Éramos já, nós e aquelas duas jovens desconhecidas, velhos amigos, velhos amantes; responsáveis por sua alma e seu corpo, apressávamo-nos: alguns minutos mais tarde e iríamos deixá-las para sempre. Na atmosfera perturbada pressentia-se o rapto e a morte.
O trem chegou e apitou. Tivemos um sobressalto como se acordássemos. Apertamos as mãos. Como esquecer o aperto forte e desesperado de nossas mãos, os dez dedos que não queriam se separar. Uma das jovens estava muito pálida, a outra ria e tremia.
Lembro de ter dito então a você: “Eis a verdade. Grécia, pátria e dever são palavras que não querem dizer nada.” E você me respondeu: “Grécia, pátria e dever, com efeito, não querem dizer nada, mas é por esse nada que vamos morrer.”
Mas, porque lhe escrevo isso? Para dizer que não esqueci de nada do que vivemos juntos. Para ter ocasião de dizer o que nunca, por causa do hábito, bom ou mau, que adquirimos de nos conter, me foi possível dizer quando estávamos juntos.
Agora que não está diante de mim, que você não vê meu rosto e que não me arrisco muito em parecer ridículo, eu lhe digo que o quero muito.
Tinha acabado minha carta. Havia conversado com meu amigo e sentia-me aliviado.

Nikos Kazantzakis, in Zorba, o Grego

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