sexta-feira, 21 de maio de 2021

O chorador

 


Na beirada do Rio Grande, Quaraí não sabe. Mas é uma cidade abençoada. Não por suas lendas nem por seu passado de glórias. Não pelo Cerro do Jarau nem por sua fronteira cortada a sangue. Nem mesmo porque as portas e as janelas não carecem de trancas porque coisa alguma as violará além de sombras e fantasmas renitentes. Quaraí não é abençoada pelo que considera importante. Quaraí é abençoada por causa do Tierri.
Fronteiriço feito touro chucro, ele tem a cara talhada em madeira, larga e grossa como um tronco de umbu. Gaúcho como os primeiros, os autênticos, com uns olhos de noite, os cabelos como pelo de bicho e o corpo maciço, feito para a lida de quem não conhece colchão. Cada músculo nascido com ele, sem conhecer academia ou anabolizante.
Tierri, um mestiço como só o pampa é capaz de parir, simples como eram as coisas e as gentes feitas entre o céu e a terra, como no princípio. Antes que o vento começasse a empurrar a roda da ambição e também a da fortuna. E o mundo virasse de pernas para o ar. Tierri é o chorador da cidade. Chora os mortos de Quaraí. Todos eles. Os ricos, os pobres, os remediados. Os que sucumbem de paixão, os que tombam de doença, os que caem de cansaço. E também os que arriam por desistência. Até mesmo os que morrem porque esqueceram de viver. Tierri chora os mortos não porque alguém tenha pedido nem porque algum parente tenha pago. Não por contrato, mas por gosto. Tierri o faz porque não chorar os mortos é ofender os vivos. Porque chorar a morte é sua missão na vida.
Não há em toda Quaraí quem saiba precisar quando tudo começou. Filho de um changueiro morto de paixão, como se diz de quem sucumbe dos males do coração, e de uma daquelas mulherzinhas pequenas que se vê por aquelas bandas. Pequenas e morenas que criam um balaio de filhos lavando na sanga, cozinhando na pedra, esfolando as mãos, os joelhos e a vontade, mas jamais desistindo porque não conhecem tal luxo. Filho do seu Caetano e da dona Negrinha, Tierri foi batizado Salatiel Vargas, nome de macho como se impõe na fronteira. E desde novo notou-se nele uma cabeça boa para as coisas do coração, desapegada das praticidades da vida.
Tierri é um passarinho cantador, que corta o pampa sibilando seu nome de um jeito comprido e sentido, como se passasse a vida chamando quem não o ouve. Salatiel tinha um irmão assim, que cortava a cidade assobiando, zunindo nos ouvidos do povo o seu apito espichado e um tanto agoniado. Por causa desta mania esse irmão foi chamado Tierri até morrer com a cabeça despedaçada em uma cancha de futebol. Salatiel herdou então o nome do morto e virou Tierri. E Tierri será até o dia de sua morte.
Não há cristão, evangélico ou ateu que saiba dizer por aqueles lados como foi que se passou. Num daqueles dias agourentos do pampa, quando o ar se anuncia como desgraça e até as vacas se constrangem de mugir, Tierri apareceu no velório. Trazia um lenço grande, encardido como se tivesse sido lavado no barro, e, mal avistou o defunto, já começou a chorar. Não o choro comedido da boa educação, com lágrimas pingando à unidade, como se o olho tivesse sido torcido. Nem o pranto do crocodilo, com uma vista no caixão e a outra na herança. Mas o choro copioso, em vagalhão, despejado de dentro do peito como se toda a sua vida fosse não mais do que um preâmbulo para aquele momento.
Era de tal qualidade o choro de Tierri que apavorou a viúva, os filhos e os parentes. E só não assustou o defunto porque este já estava esquecido das misérias terrenas, preocupado apenas em desencarnar o mais breve possível e não prolongar nem um minuto a mais sua estadia na terra. Tierri chorava aos soluços, dava para ouvir o galope do peito. Chorava um choro chorado, alquebrado sobre o ataúde, mirando o defunto como se não quisesse esquecer nenhum detalhe do rosto que a terra em seguida engoliria, com indiferença e também com generosidade. Não contente em chorar, gemer e suspirar em volume máximo, Tierri ainda beijava o esquife, com uns beijos chupados, babados e estalados. E bradava, a quantos andassem por ali:
Morreu, maninha!
Desde então, lá se vão anos e até décadas, Tierri vem chorando todos os mortos de Quaraí. Não se sabe como descobre nem como tão rápido aparece, mas muitos já foram os velórios em que Tierri chegou junto com o morto, antes dos parentes. Basta a notícia o alcançar para largar tudo de pronto. Sobe no primeiro ônibus e desembarca na funerária. Chega, vai sacando o lenço do bolso e se põe a fungar como se não vivesse para outro fim. Deixa patrão empenhado, biscate pela metade, jornal por entregar, caminho pelo meio. Não há nada mais forte para Tierri do que o chamado dos mortos. E aquele índio graúdo, largo como um boi de canga, chora tanto, tão bem e tão sentido que recebe os pêsames como se parente fosse.
Tanto é o seu empenho em atender aos finados com presteza que, às vezes, Tierri se precipita. Dias atrás avistou a ambulância na porta e já foi adentrando na casa. O doente não pensava em morrer, sequer ensaiava uns passinhos no além. Tierri desdobrava o lenço quando foi corrido como mau agouro. Saiu com uma lágrima escorrendo do canto do olho, uma que não conseguiu recolher a tempo. Tal é a ânsia de adivinhar o desenlace para prestar com brio as fúnebres homenagens, que Tierri acabou por se tornar o flagelo dos velhinhos da cidade. Mal adivinha um passeando seus passos vacilantes pelos lados da praça e já sai correndo atrás. Se atira às costas do pobre e sentencia, de joelhos e mãos em prece:
Este vaaai!
E sempre que lhe perguntam por que abre as comportas dos olhos para todo e qualquer defunto, sem ver idade, sexo, raça, religião ou posses, Tierri responde do mesmo jeito. Arregala os olhos como se não entendesse tão descabida questão e despeja seu vozeirão enrolado:
É meu amigo.
Tierri chora generosa e democraticamente. E, se aos mortais comuns a vida não reserva nenhuma certeza, em Quaraí o povo pode morrer sossegado.
Por isso é uma cidade abençoada. Por causa não de suas glórias passadas nem de suas lendas contadas nem de seu alardeado sossego. Mas porque é a única onde um cidadão pode viver com a certeza de que será chorado na morte. Não um choro pingado nem um pranto interesseiro. Mas um choro afogado, do fundo do peito, como se não houvesse vivido no mundo pessoa mais amada, querida e acalentada. É essa a missão de Tierri, de quem às vezes o povo ri ou judia. Esse Tierri humilde, que muita gente arrelia, entendeu que não havia nada mais nobre do que dar importância na morte mesmo a quem não a teve na vida. Ele, que conhece na pele e na herança a desigualdade da sina, inventou um jeito de igualar a todos pelo menos no último dia.
Talvez tudo o que Tierri espere é que, quando também ele se for, Quaraí lhe dê na morte a importância que não lhe deu na vida. E chore um choro sentido, fungado e babado pela morte de quem por ela chorou toda a vida.

Eliane Brum, in A vida que ninguém vê

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