(...e é enxergando os utensílios, e
mais o vestuário da família, que escuto vozes difusas perdidas
naquele fosso, sem me surpreender contudo com a água transparente
que ainda brota lá do fundo; e recuo em nossas fadigas, e recuo em
tanta luta exausta, e vou puxando desse feixe de rotinas, um a um, os
ossos sublimes do nosso código de conduta: o excesso proibido, o
zelo uma exigência, e, condenado como vício, a prédica constante
contra o desperdício, apontado sempre como ofensa grave ao trabalho;
e reencontro a mensagem morna de cenhos e sobrolhos, e as nossas
vergonhas mais escondidas nos traindo no rubor das faces, e a
angústia ácida de um pito vindo a propósito, e uma disciplina às
vezes descarnada, e também uma escola de meninos-artesãos,
defendendo de adquirir fora o que pudesse ser feito por nossas
próprias mãos, e uma lei ainda mais rígida, dispondo que era lá
mesmo na fazenda que devia ser amassado o nosso pão: nunca tivemos
outro em nossa mesa que não fosse o pão de casa, e era na hora de
reparti-lo que concluíamos, três vezes ao dia, o nosso ritual de
austeridade, sendo que era também na mesa, mais que em qualquer
outro lugar, onde fazíamos de olhos baixos o nosso aprendizado da
justiça.)
Raduan Nassar, in Lavoura Arcaica
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