segunda-feira, 17 de maio de 2021

A sinfonia

O dia era claro, azul de aço. Ar e mar, os firmamentos mal se podiam distinguir em meio ao tom cerúleo, que tudo impregnava; apenas a brisa, meditativa, era transparentemente pura e suave, como um semblante de mulher, enquanto o oceano viril, masculino, se erguia em longas ondulações, largas e lentas, como o peito de Sansão durante o sono.
De lá, de cá, pelas alturas, deslizavam níveas as asas de pequenos pássaros imaculados; eram doces pensamentos da brisa feminina; mas, de um lado, de outro, pelas profundezas de um azul sem fundo, corriam os gigantescos Leviatãs, os peixes-espada e os tubarões; e tais eram os pensamentos vigorosos, tensos e mortíferos do másculo oceano.
Mas, ainda que contrastantes por dentro, por fora havia apenas um contraste de tons e traços; os dois pareciam um só; apenas o sexo, assim digamos, era o que os distinguia.
Nas alturas, como um czar, rei majestoso, o sol parecia oferecer a brisa gentil a esse ousado mar agitado; tal como a noiva ao noivo. E na linha anelada do horizonte um movimento suave e trêmulo – visto especialmente aqui no Equador – revelava a fé latejante e apaixonada, os temores amorosos, com que a pobre noiva entregava o peito.
Atado e retorcido; nodoso e vincado de rugas; terrivelmente tenaz e obstinado; os olhos luzindo feito brasas, que permanecem luzindo nas cinzas da ruína; o vacilante Ahab avançava na claridade da manhã; erguendo o elmo destruído de seu rosto para a bela tez de menina do céu.
Ó, imortal infância e inocência celestial! Invisíveis criaturas aladas que se divertem à nossa volta! Doce infância do ar e do céu! Quão esquecidos estáveis da aflição que estrangulava Ahab! Mas dessa maneira vi as pequenas Míriam e Marta, duendes de olhos risonhos, saltando distraídas em volta de seu velho pai; divertindo-se com um círculo de cachos de cabelo chamuscados que cresciam à beira do vulcão extinto de seu cérebro.
Atravessando devagar o convés, saído de sua escotilha, Ahab debruçou-se sobre a amurada e observou como sua sombra na água afundava mais e mais sob sua contemplação, ainda que mais e mais se esforçasse em penetrar a profundeza. Mas os suaves aromas daquela brisa encantada pareciam dispersar afinal, por um momento, a coisa cancrosa que assomava em sua alma. Aquela brisa alegre, aprazível, aquele céu cativante, por fim o arrebataram e afagaram; a vida madrasta, por tanto tempo cruel – proibitiva –, agora lançava os braços afetuosos em torno de seu pescoço obstinado e parecia soluçar de felicidade sobre ele, como se sobre alguém que, apesar da teimosia e dos erros, ela ainda pudesse de coração salvar e abençoar. Sob o chapéu desabado, Ahab deixou cair uma lágrima no mar; o Pacífico inteiro não continha a riqueza daquela gota minúscula.
Starbuck viu o velho; viu como se apoiava pesadamente sobre a amurada; e pareceu escutar, em seu próprio coração fiel, o soluço desmedido, arrancado ao íntimo da serenidade que os cercava. Atento para não tocá-lo, não se permitindo notar, aproximou-se dele e ali ficou parado.
Ahab virou-se.
Starbuck!”
Senhor.”
Oh, Starbuck! O vento está calmo, calmo, e o céu parece calmo. Num dia como este – com este mesmo candor – ferrei minha primeira baleia – um jovem arpoador de dezoito anos! Quarenta – quarenta – quarenta anos atrás! – atrás! Quarenta anos contínuos de caça! Quarenta anos de privações, perigos e tormentas! Quarenta anos no oceano implacável! Há quarenta anos Ahab abandonou a terra tranquila, há quarenta anos, para guerrear nos horrores das profundezas! Sim, isso, Starbuck, desses quarenta anos não passei três em terra. Quando penso na vida que levei; na desolada solidão que tem sido; na muralha, na cidadela do isolamento de um Capitão, que admite pouco acesso à simpatia dos verdes campos de fora – oh, fadiga! opressão! Escravidão de uma costa da Guiné, eis o comando solitário! – quando penso nisso tudo; antes eu apenas suspeitava, não era capaz de perceber com tanta clareza – e como, por quarenta anos, comi da ração seca e salgada – símbolo adequado para o seco alimento de minha alma! – quando todos os dias o mais pobre dos homens da terra tem à mão os frutos frescos e o pão fresco do mundo, em vez de minhas crostas emboloradas – distante, oceanos inteiros distante da esposa-menina com a qual me casei depois dos cinquenta anos; e velejei para o cabo Horn no dia seguinte, deixando apenas um vestígio meu no travesseiro nupcial – esposa? esposa? – antes viúva de um marido vivo! Sim, enviuvei a pobre moça quando a desposei, Starbuck; e depois, a loucura, o frenesi, o sangue fervendo e o rosto queimando, com os quais, em mil descidas, o velho Ahab, espumando, perseguiu furiosamente sua presa – mais demônio do que um homem! – Sim, sim! Que idiota, durante quarenta anos – Idiota – Um velho idiota, isso é o que Ahab tem sido! Por que essa porfia da caça? Por que o braço cansado e esgotado no remo, no ferro e na lança? Quanto mais rico ou melhor está Ahab agora? Olha. Ah, Starbuck! Não é penoso que, com este fardo pesado que carrego, uma pobre perna me tenha sido arrancada? Aqui, põe esse velho cabelo de lado; ele me cega de ver minhas próprias lágrimas. Mechas tão grisalhas só crescem das cinzas! Mas pareço muito velho, muito, muito velho, Starbuck? Sinto-me muito fraco, curvado, corcunda, como se eu fosse Adão cambaleando sob os séculos acumulados desde o Paraíso. Deus! Deus! Deus! – Parte o meu coração! – Destroça o meu cérebro! – Escárnio! Escárnio! Escárnio amargo e mordaz dos cabelos grisalhos, já vivi o suficiente para tê-los; e, assim, parecer e sentir-me intoleravelmente velho? Mais perto! Vem mais perto de mim, Starbuck; deixa-me contemplar um olho humano; é melhor do que contemplar o mar ou o céu; melhor do que contemplar Deus. Em nome da terra verdejante; em nome da lareira acesa! Esse é o espelho mágico, homem; vejo a minha esposa e o meu filho em teu olho. Não, não; fica a bordo, a bordo! – não desças ao mar quando eu for; quando o estigmatizado Ahab der caça a Moby Dick. Tal risco não deve ser teu. Não, não! Não, pela casa longínqua que vejo em teu olho!”
Oh, meu Capitão! Meu Capitão! Nobre alma! Grande e velho coração, afinal! Por que deveria alguém dar caça a esse peixe maldito! Vem comigo! Fujamos destas águas mortíferas! Voltemos para casa! Starbuck também tem esposa e filho – esposa e filho de sua fraterna, afetuosa e brejeira juventude; como os teus, senhor, são a esposa e o filho da tua terna, nostálgica e paterna velhice! Embora! Vamos embora! – deixa-me alterar a rota agora mesmo! Com que alegria, com que regozijo, ó, meu Capitão, aproaríamos para ver a velha Nantucket outra vez! Acredito, senhor, que há dias límpidos e azuis como este também em Nantucket.”
Sim, há, claro que há. Já os vi – certos dias de verão, pela manhã. Quase a esta hora – sim, é hora da sesta agora – o menino acorda alegre; senta-se na cama; e a mãe lhe fala de mim, do velho canibal que sou, de como estou longe sobre as profundezas, mas que ainda voltarei para brincar com ele.”
É a minha Mary, a minha própria Mary! Ela prometeu que meu filho seria levado todas as manhãs à colina para ser o primeiro a avistar a vela de seu pai! Sim, sim! Basta! Está decidido! Rumo a Nantucket! Vem, meu capitão, estuda a rota e vamos embora! Olha, olha! O rosto do menino na janela! A mão do menino na colina!”
Mas o olhar de Ahab afastou-se; como uma árvore arruinada, tremeu, deixando cair sua última maçã, apodrecida, no chão.
Que coisa é essa, que coisa sem nome, inescrutável, sobrenatural é essa; que fraudulento e secreto senhor e mestre, cruel e impiedoso imperador me domina; que contra todos os afetos e desejos naturais eu me sinta empurrado e pressionado e forçado o tempo todo; imprudentemente pronto àquilo que no meu próprio coração natural jamais ousei e ousaria? É Ahab, Ahab? Sou eu, Deus, ou quem é que ergue esse braço? Mas se o grande sol não se move por si; se é como um garoto perdido no céu; se nem uma simples estrela se mexe, salvo por uma força invisível; como pode então esse pequeno coração bater; esse pequeno cérebro pensar pensamentos, a não ser que Deus o faça bater, faça-o pensar, faça-o viver, e não eu? Céus! Homem, somos postos a girar e girar neste mundo, como aquele molinete, e o Destino é a alavanca. E o tempo todo, oh! Eis o céu sorridente, eis o oceano inquieto! Olha! Vê aquela albacora! Quem a fez perseguir e apanhar aquele peixe-voador? Para onde vão os assassinos, homem? A quem cabe condenar, quando o próprio juiz é levado ao tribunal? Mas o vento está calmo, calmo, e o céu parece calmo; e a brisa está perfumada agora, como se soprasse de uma campina longínqua; estiveram cortando feno em algum lugar nas encostas dos Andes, Starbuck, e os ceifeiros dormem agora sobre o feno recém-cortado. Dormem? Sim, por mais que labutemos, todos afinal dormiremos no campo. Dormiremos? Sim, e criaremos ferrugem no verdor; como no ano passado as foices deixadas esquecidas em meio ao trigo quase todo ceifado – Starbuck!”
Porém, lívido como um cadáver, em seu desespero, o Imediato havia se retirado.
Ahab atravessou o convés para olhar do outro lado; mas se assustou diante de dois olhos fixos refletidos na água. Fedallah, imóvel, estava debruçado sobre a mesma amurada.

Herman Melville, in Moby Dick

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