segunda-feira, 3 de maio de 2021

Do imaculado conhecimento

Ontem, quando surgiu a lua, julguei que ela fosse dar à luz um sol, tão grande e pejada se encontrava no horizonte.
Mas era uma mentira sua gravidez, e eu antes acreditaria no homem da lua do que na mulher.
Mas certamente não é muito homem, essa acanhada noctívaga. Em verdade, é com má consciência que anda sobre os telhados.
Pois é lascivo e ciumento o monge que há na lua, desejoso da terra e de todas as alegrias dos amantes.
Não, não gosto dele, esse gato sobre os telhados! Tenho aversão a todos os que rondam janelas semicerradas!
Devoto e silencioso ele anda sobre tapetes de estrelas: — mas não gosto dos pés de homem que pisam levemente, em que nem uma espora retine.
O passo de todo homem honesto diz algo; mas o gato desliza sobre o chão. Vê, como um felino aproxima-se a lua, e insincera. —
Este símile ofereço a vós, hipócritas sentimentais, a vós, os “homens do puro conhecimento”! A vós eu chamo — lascivos!
Também vós amais a terra e as coisas terrenas: eu bem vos adivinhei! — mas há vergonha em vosso amor, e má consciência — vós semelhais a lua!
A desprezar as coisas terrenas persuadiram vosso espírito, mas não vossas entranhas: mas estas são o mais forte em vós!
E agora vosso espírito se envergonha de fazer a vontade de vossas entranhas e, para escapar à sua vergonha, toma caminhos furtivos e mentirosos.
Seria para mim o mais elevado” — assim diz a si próprio seu espírito mendaz — “olhar para a vida sem desejo, e não, como um cachorro, com a língua pendente:
Ser feliz em olhar, com vontade já morta, sem as garras e a cobiça do egoísmo — frio e cinzento no corpo inteiro, mas com ébrios olhos de lua!
Seria para mim o melhor” — desse modo seduz a si mesmo o seduzido — “amar a terra tal como a ama a lua, e somente com os olhos apalpar sua beleza.
E isto seja para mim o imaculado conhecimento de todas as coisas, que eu nada queira das coisas: exceto que possa estar diante delas como um espelho com cem olhos.” —
Ó hipócritas sentimentais, ó lascivos! Falta-vos a inocência no desejo: e por isso caluniais agora o desejar!
Em verdade, não amais a terra como quem cria, gera, tem prazer no devir!
Onde está a inocência? Onde há vontade de gerar. E quem quer criar para além de si, tem para mim a vontade mais pura.
Onde está a beleza? Onde tenho de querer com toda a vontade; onde quero amar e declinar, para que uma imagem não permaneça apenas imagem.
Amar e declinar: há eternidades essas coisas combinam. Vontade de amor: isso é ter boa vontade também para com a morte. Assim falo eu convosco, ó covardes!
Mas agora vosso emasculado olhar de esguelha quer se chamar “contemplação”! E o que se deixa apalpar com olhos covardes deve ser batizado de “belo”! Ó emporcalhadores de nomes nobres!
Mas esta deve ser vossa maldição, ó imaculados, homens do puro conhecimento: que jamais dareis à luz; ainda que vos acheis grandes e pejados no horizonte!
Em verdade, encheis a boca de palavras nobres: e devemos acreditar que o vosso coração transborda, ó grandes mentirosos?
Mas as minhas palavras são pequenas, desprezadas, tortas: de bom grado recolho o que cai de vossa mesa durante as refeições.
Ainda posso usá-las para — dizer a verdade aos hipócritas! Sim, minhas espinhas de peixe, conchas e cardos devem — comichar os narizes dos hipócritas!
Há sempre um ar ruim em torno a vós e vossas refeições: pois vossos pensamentos lascivos, vossas mentiras e segredos estão no ar!
Ousai primeiro acreditar em vós mesmos — em vós e vossas entranhas! Quem não acredita em si mesmo sempre mente.
Envergastes a máscara de um deus, ó “puros”: para dentro da máscara de um deus esgueirou-se vosso horroroso verme anelado.
Em verdade, vós enganais, “contemplativos”! Também Zaratustra foi, certa vez, ludibriado por vossa divina pele; não percebeu como estava cheia de anéis de serpente.
Um dia imaginei ver a alma de um deus a brincar em vossos brinquedos, ó homens do puro conhecimento! Um dia não imaginei arte melhor do que vossas artes!
A distância me ocultava a sujeira e o mau odor de serpente: e que ali rondava, lasciva, a astúcia de um lagarto.
Mas cheguei perto de vós: então fez-se dia para mim — agora faz-se para vós; chegou ao fim o caso de amor com a lua!
Olhai! Ali está ela, surpreendida e pálida — antes da aurora!
Pois logo chega ele, o incandescente — chega o seu amor à terra! Inocência e desejo de criador é todo amor solar!
Olhai como chega impaciente sobre o mar! Não sentis a sede e o quente hálito do seu amor?
Ele quer sugar o mar e beber sua profundidade, levando-a até às alturas: então o desejo do mar se eleva com mil seios.
Beijado e sugado quer ser este pela avidez do sol; quer tornar-se ar, altura, trilha de luz e ele próprio luz!
Em verdade, tal como o sol amo a vida e todos os mares profundos.
E isto é conhecimento para mim: tudo profundo deve subir — até minha altura!
Assim falou Zaratustra.

Friedrich Nietzsche, in Assim falou Zaratustra

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