É hora de explorar uma nova estética da
Natureza. Nos últimos anos, em alguns de meus livros e ensaios,
venho discutindo a crise que vem emergindo na física de ponta, em
particular, na busca por uma teoria que unifique todas as leis da
Natureza, e a falta de dados, após décadas de experimentos
diversos, que justifique tal busca. Este é um momento curioso na
história da ciência, em que as expectativas de como a Natureza deve
funcionar têm sido frustradas pelo silêncio persistente dos
instrumentos científicos, cada vez mais intrincados e sofisticados,
que se recusam a revelar alguma descoberta nova. O ímpeto
intelectual de buscar uma unidade fundamental nas leis que regem a
Natureza é compreensível. (Eu mesmo passei anos da minha carreira
trabalhando nesta área.)
Afinal, uma leitura possível da história
da ciência é a revelação, cada vez mais ampla, de uma unificação
do que aparentemente são fenômenos naturais desconectados.
Unificação, aqui, significa encontrar uma descrição única para
coisas que, aparentemente, parecem não ter uma ligação entre si.
Eis alguns exemplos históricos. Os primeiros filósofos da Grécia
Antiga, em torno de 600 a.C., formularam a questão essencial de seu
pensamento em termos que são ainda muito pertinentes: “Do que é
feito o mundo?”, perguntaram. Suas respostas iniciais foram já uma
tentativa de unificação: para Tales, o primeiro deles, tudo era
feito de água; para Anaximandro, seu discípulo, de uma substância
primordial indefinida, de onde tudo vinha e para onde tudo voltava;
para Anaxímenes, tudo era feito de ar, com densidades diferentes;
para Heráclito, de fogo, com seu poder transformador.
Já Aristóteles, em torno de 350 a.C.,
sugeriu que todos os objetos celestes são compostos de uma quinta
substância, o éter, perfeito e imutável, enquanto, aqui na Terra,
tudo é combinação dos quatro elementos básicos, terra, água, ar
e fogo. Suas ideias irão influenciar o pensamento europeu por 2 mil
anos. No século XVII, Newton unificou os movimentos na Terra e nos
céus com sua teoria da gravitação universal: a maçã cai e a Lua
viaja em torno da Terra devido à mesma força entre duas ou mais
massas. Essa descoberta abriu o cosmo por inteiro para a mente
humana, que, agora, podia estender seu alcance aos confins do espaço.
A escrita da Natureza é matemática, os
movimentos seguem leis precisas, expressas através de equações.
Para Newton e seus sucessores, a geometria tem um papel básico, a
linguagem do dialeto cósmico. A chave que abre as portas para os
segredos da Criação é a simetria. Newton escreveu sua obra-prima,
Princípios matemáticos da filosofia natural, como um tratado
geométrico. A física, como descrição da Natureza, é o estudo dos
movimentos e propriedades dos vários objetos, dos átomos a
planetas, seguindo leis da geometria. O sucesso da revolução
newtoniana alavancou o Iluminismo do século XVIII.
As ideias de Newton foram generalizadas e
aplicadas ao estudo da sociedade e das suas leis. Usando uma
formulação matemática da realidade natural e social como ponto de
partida, filósofos e cientistas buscavam uma ordem fundamental do
mundo, uma espécie de mapa da Criação, cujos segredos, quando
desvendados, elevariam nossas mentes imperfeitas à perfeição
abstrata da mente divina. Essa interpretação do racionalismo
iluminista mostra que a visão que muitas pessoas têm da ciência –
como sendo uma mera descrição quantitativa da realidade material –
é falsa. Por trás dela, vemos que essa busca por uma racionalidade
na Natureza esconde algo mais profundo, a ciência como veículo de
transcendência; o homem em busca de uma intelectualidade purificada,
semidivina.
O Iluminismo tentou eliminar Deus, ou, ao
menos, limitar sua ação como criador do Universo e das suas leis,
para pôr a razão humana em seu lugar. É essa a raiz do problema.
Em torno de 400 a.C., Platão havia proposto que a essência da
realidade está no mundo das ideias, e não na realidade que
percebemos com nossos sentidos. Para ele, este mundo das ideias era
ancorado na matemática. A ciência desenvolvida por Newton e por
seus sucessores, herdeira dessa tradição filosófica, busca as leis
matemáticas da Natureza, o mapa racional da realidade. Com isso, o
físico teórico tornou-se um tradutor cujo objetivo é revelar, aos
poucos, as várias partes desse mapa, como peças de um
quebra-cabeça. Não há dúvida de que este é um objetivo nobre.
Mas ele vem com uma bagagem ideológica problemática.
Após Newton e o desenvolvimento da
mecânica, a busca por uma unidade fundamental na Natureza deu um
enorme passo no século XIX com o eletromagnetismo de James Maxwell e
Michael Faraday, com os campos elétrico e magnético passando a ser
vistos como manifestações de um único campo, que viaja no espaço
na velocidade da luz. Unificação tornou-se sinônimo de
simplicidade, e simplicidade de beleza, especialmente quando expressa
matematicamente através de alguma simetria. Por exemplo, um círculo
permanece o mesmo quando é girado em torno de seu eixo central.
Dizemos que é “invariante por uma rotação”. Ou seja, após uma
operação matemática (a rotação), permanece idêntico (é
simétrico). Os gregos consideravam o círculo – a mais perfeita
das formas – o tijolo essencial da realidade. A partir daí, o
conceito de perfeição matemática foi adotado como estética da
Natureza: a beleza (simetria matemática) como critério de verdade.
Nas últimas décadas do século XX, essa
estratégia atingiu o clímax com a teoria de supercordas. Para
unificar as quatro forças da Natureza (gravidade, eletromagnetismo e
as forças nucleares forte e fraca) e as partículas conhecidas de
matéria, a teoria necessita de seis dimensões extras do espaço e
mais um tipo novo de simetria, a “supersimetria”. Ambas as
propriedades geram efeitos que experimentos podem, em princípio,
detectar; essencialmente, novas partículas de matéria. O plano,
portanto, estava forjado: bastava encontrar essas novas partículas,
conectá-las a modelos inspirados pela supersimetria e provar que, de
fato, a estética da perfeição matemática como critério de
verdade representa a essência da Natureza física. Infelizmente,
após quatro décadas de busca, as novas partículas não foram
encontradas.
Não temos qualquer evidência de que a
supersimetria de fato exista. Os que continuam defendendo esse modelo
da Natureza encolhem os ombros: “E daí? Talvez as partículas
sejam pesadas demais para os detectores que temos no momento. Vamos
continuar procurando que, eventualmente, vamos encontrá-las.”
Talvez. Ou, talvez, não existam mesmo. Essa é uma escolha difícil,
que envolve não só os limites da pesquisa científica quanto
aspectos mais subjetivos e emocionais. Se você aposta numa ideia por
quarenta anos, fica difícil desistir dela. Infelizmente, a Natureza
pouco se importa com nossos ideais estéticos. Existe, no entanto,
uma alternativa. Talvez, a estética baseada na “beleza como
critério de verdade” seja mais um preconceito cultural do que uma
diretriz científica. Não há dúvida de que ela serviu muito bem à
física, e que inspirou inúmeras descobertas espetaculares.
O erro, o perigo, é elevar esse sucesso
à categoria de princípio da Natureza. Como argumentei em meu livro
Criação imperfeita, essa atitude cria uma espécie de cegueira
intelectual, não muito diferente do fervor religioso: “Existe
apenas um caminho para a verdade, e é o que escolhi. Qualquer
alternativa está errada.” E se virarmos essa ideia de cabeça para
baixo e propor que a imperfeição, e não a perfeição, é o portal
para os segredos da Natureza? Afinal, a história da física pode
também ser contada como uma história de imperfeições e
assimetrias se intrometendo nos sonhos de teorias perfeitas. Como
explorei em Criação imperfeita, muitos dos chamados sucessos das
várias unificações através da história ocorrem apenas em
circunstâncias especiais.
As equações de Maxwell do
eletromagnetismo apenas revelam a belíssima simetria entre os campos
elétrico e magnético na ausência de fontes (por exemplo, cargas
elétricas e ímãs). Como este, existem vários outros exemplos, que
vão da física à biologia. Mais corretamente, podemos dizer que a
Natureza funciona não por ser perfeita, mas por ser tanto perfeita
quanto imperfeita. A assimetria traz o desequilíbrio, e o
desequilíbrio é a raiz de todas as transformações. Em vez de
coroar a perfeição como a essência da realidade, o mais correto é
propor uma complementaridade das duas na descrição de como a
Natureza funciona. Como nas artes, que, há mais de um século,
romperam com os ideais de perfeição do passado, a física precisa
reconsiderar seu caminho atual. Uma estética da Natureza baseada na
imperfeição é tão essencial quanto uma baseada na perfeição.
Precisamos de ambas.
Afinal, somos produto de inúmeras
imperfeições e perfeições, de simetrias e assimetrias, todas elas
parte da essência do cosmo. Somos capazes de desvendar algumas
delas, e é este o objetivo central da ciência. Por outro lado,
devemos, também, aceitar que somos parcialmente cegos para muito do
que ocorre no mundo. Precisamos de humildade para aceitar que a
essência da realidade permanece incognoscível. A ciência nos conta
apenas parte da história, fornecendo um mapa incompleto do mundo.
Não somos nós que decidimos como a Natureza funciona. É ela que
tem a última palavra, sua essência revelada na tensão entre o
perfeito e o imperfeito.
Marcelo Gleiser, in O caldeirão azul
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