terça-feira, 4 de maio de 2021

A beleza oculta da imperfeição

É hora de explorar uma nova estética da Natureza. Nos últimos anos, em alguns de meus livros e ensaios, venho discutindo a crise que vem emergindo na física de ponta, em particular, na busca por uma teoria que unifique todas as leis da Natureza, e a falta de dados, após décadas de experimentos diversos, que justifique tal busca. Este é um momento curioso na história da ciência, em que as expectativas de como a Natureza deve funcionar têm sido frustradas pelo silêncio persistente dos instrumentos científicos, cada vez mais intrincados e sofisticados, que se recusam a revelar alguma descoberta nova. O ímpeto intelectual de buscar uma unidade fundamental nas leis que regem a Natureza é compreensível. (Eu mesmo passei anos da minha carreira trabalhando nesta área.)
Afinal, uma leitura possível da história da ciência é a revelação, cada vez mais ampla, de uma unificação do que aparentemente são fenômenos naturais desconectados. Unificação, aqui, significa encontrar uma descrição única para coisas que, aparentemente, parecem não ter uma ligação entre si. Eis alguns exemplos históricos. Os primeiros filósofos da Grécia Antiga, em torno de 600 a.C., formularam a questão essencial de seu pensamento em termos que são ainda muito pertinentes: “Do que é feito o mundo?”, perguntaram. Suas respostas iniciais foram já uma tentativa de unificação: para Tales, o primeiro deles, tudo era feito de água; para Anaximandro, seu discípulo, de uma substância primordial indefinida, de onde tudo vinha e para onde tudo voltava; para Anaxímenes, tudo era feito de ar, com densidades diferentes; para Heráclito, de fogo, com seu poder transformador.
Já Aristóteles, em torno de 350 a.C., sugeriu que todos os objetos celestes são compostos de uma quinta substância, o éter, perfeito e imutável, enquanto, aqui na Terra, tudo é combinação dos quatro elementos básicos, terra, água, ar e fogo. Suas ideias irão influenciar o pensamento europeu por 2 mil anos. No século XVII, Newton unificou os movimentos na Terra e nos céus com sua teoria da gravitação universal: a maçã cai e a Lua viaja em torno da Terra devido à mesma força entre duas ou mais massas. Essa descoberta abriu o cosmo por inteiro para a mente humana, que, agora, podia estender seu alcance aos confins do espaço.
A escrita da Natureza é matemática, os movimentos seguem leis precisas, expressas através de equações. Para Newton e seus sucessores, a geometria tem um papel básico, a linguagem do dialeto cósmico. A chave que abre as portas para os segredos da Criação é a simetria. Newton escreveu sua obra-prima, Princípios matemáticos da filosofia natural, como um tratado geométrico. A física, como descrição da Natureza, é o estudo dos movimentos e propriedades dos vários objetos, dos átomos a planetas, seguindo leis da geometria. O sucesso da revolução newtoniana alavancou o Iluminismo do século XVIII.
As ideias de Newton foram generalizadas e aplicadas ao estudo da sociedade e das suas leis. Usando uma formulação matemática da realidade natural e social como ponto de partida, filósofos e cientistas buscavam uma ordem fundamental do mundo, uma espécie de mapa da Criação, cujos segredos, quando desvendados, elevariam nossas mentes imperfeitas à perfeição abstrata da mente divina. Essa interpretação do racionalismo iluminista mostra que a visão que muitas pessoas têm da ciência – como sendo uma mera descrição quantitativa da realidade material – é falsa. Por trás dela, vemos que essa busca por uma racionalidade na Natureza esconde algo mais profundo, a ciência como veículo de transcendência; o homem em busca de uma intelectualidade purificada, semidivina.
O Iluminismo tentou eliminar Deus, ou, ao menos, limitar sua ação como criador do Universo e das suas leis, para pôr a razão humana em seu lugar. É essa a raiz do problema. Em torno de 400 a.C., Platão havia proposto que a essência da realidade está no mundo das ideias, e não na realidade que percebemos com nossos sentidos. Para ele, este mundo das ideias era ancorado na matemática. A ciência desenvolvida por Newton e por seus sucessores, herdeira dessa tradição filosófica, busca as leis matemáticas da Natureza, o mapa racional da realidade. Com isso, o físico teórico tornou-se um tradutor cujo objetivo é revelar, aos poucos, as várias partes desse mapa, como peças de um quebra-cabeça. Não há dúvida de que este é um objetivo nobre. Mas ele vem com uma bagagem ideológica problemática.
Após Newton e o desenvolvimento da mecânica, a busca por uma unidade fundamental na Natureza deu um enorme passo no século XIX com o eletromagnetismo de James Maxwell e Michael Faraday, com os campos elétrico e magnético passando a ser vistos como manifestações de um único campo, que viaja no espaço na velocidade da luz. Unificação tornou-se sinônimo de simplicidade, e simplicidade de beleza, especialmente quando expressa matematicamente através de alguma simetria. Por exemplo, um círculo permanece o mesmo quando é girado em torno de seu eixo central. Dizemos que é “invariante por uma rotação”. Ou seja, após uma operação matemática (a rotação), permanece idêntico (é simétrico). Os gregos consideravam o círculo – a mais perfeita das formas – o tijolo essencial da realidade. A partir daí, o conceito de perfeição matemática foi adotado como estética da Natureza: a beleza (simetria matemática) como critério de verdade.
Nas últimas décadas do século XX, essa estratégia atingiu o clímax com a teoria de supercordas. Para unificar as quatro forças da Natureza (gravidade, eletromagnetismo e as forças nucleares forte e fraca) e as partículas conhecidas de matéria, a teoria necessita de seis dimensões extras do espaço e mais um tipo novo de simetria, a “supersimetria”. Ambas as propriedades geram efeitos que experimentos podem, em princípio, detectar; essencialmente, novas partículas de matéria. O plano, portanto, estava forjado: bastava encontrar essas novas partículas, conectá-las a modelos inspirados pela supersimetria e provar que, de fato, a estética da perfeição matemática como critério de verdade representa a essência da Natureza física. Infelizmente, após quatro décadas de busca, as novas partículas não foram encontradas.
Não temos qualquer evidência de que a supersimetria de fato exista. Os que continuam defendendo esse modelo da Natureza encolhem os ombros: “E daí? Talvez as partículas sejam pesadas demais para os detectores que temos no momento. Vamos continuar procurando que, eventualmente, vamos encontrá-las.” Talvez. Ou, talvez, não existam mesmo. Essa é uma escolha difícil, que envolve não só os limites da pesquisa científica quanto aspectos mais subjetivos e emocionais. Se você aposta numa ideia por quarenta anos, fica difícil desistir dela. Infelizmente, a Natureza pouco se importa com nossos ideais estéticos. Existe, no entanto, uma alternativa. Talvez, a estética baseada na “beleza como critério de verdade” seja mais um preconceito cultural do que uma diretriz científica. Não há dúvida de que ela serviu muito bem à física, e que inspirou inúmeras descobertas espetaculares.
O erro, o perigo, é elevar esse sucesso à categoria de princípio da Natureza. Como argumentei em meu livro Criação imperfeita, essa atitude cria uma espécie de cegueira intelectual, não muito diferente do fervor religioso: “Existe apenas um caminho para a verdade, e é o que escolhi. Qualquer alternativa está errada.” E se virarmos essa ideia de cabeça para baixo e propor que a imperfeição, e não a perfeição, é o portal para os segredos da Natureza? Afinal, a história da física pode também ser contada como uma história de imperfeições e assimetrias se intrometendo nos sonhos de teorias perfeitas. Como explorei em Criação imperfeita, muitos dos chamados sucessos das várias unificações através da história ocorrem apenas em circunstâncias especiais.
As equações de Maxwell do eletromagnetismo apenas revelam a belíssima simetria entre os campos elétrico e magnético na ausência de fontes (por exemplo, cargas elétricas e ímãs). Como este, existem vários outros exemplos, que vão da física à biologia. Mais corretamente, podemos dizer que a Natureza funciona não por ser perfeita, mas por ser tanto perfeita quanto imperfeita. A assimetria traz o desequilíbrio, e o desequilíbrio é a raiz de todas as transformações. Em vez de coroar a perfeição como a essência da realidade, o mais correto é propor uma complementaridade das duas na descrição de como a Natureza funciona. Como nas artes, que, há mais de um século, romperam com os ideais de perfeição do passado, a física precisa reconsiderar seu caminho atual. Uma estética da Natureza baseada na imperfeição é tão essencial quanto uma baseada na perfeição. Precisamos de ambas.
Afinal, somos produto de inúmeras imperfeições e perfeições, de simetrias e assimetrias, todas elas parte da essência do cosmo. Somos capazes de desvendar algumas delas, e é este o objetivo central da ciência. Por outro lado, devemos, também, aceitar que somos parcialmente cegos para muito do que ocorre no mundo. Precisamos de humildade para aceitar que a essência da realidade permanece incognoscível. A ciência nos conta apenas parte da história, fornecendo um mapa incompleto do mundo. Não somos nós que decidimos como a Natureza funciona. É ela que tem a última palavra, sua essência revelada na tensão entre o perfeito e o imperfeito.

Marcelo Gleiser, in O caldeirão azul

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