sábado, 20 de março de 2021

Uma espécie de bênção

          Antes da construção malsucedida da Torre de Babel, falava-se uma única língua na Terra, muito semelhante à do Jardim do Éden. No jardim, falavam-se basicamente os substantivos próprios, que em tudo coincidiam com as coisas que nomeavam. Por exemplo: a palavra cão era o próprio cão e não era preciso qualificá-lo para se saber o tipo de cão, sua personalidade e características. Dizer cão dizia tudo.
A construção da Torre de Babel durou quarenta e três anos, até que Deus desceu ao local e, como punição aos indivíduos que desejavam, com a torre, espalhar seu nome e tornar-se famosos, confundiu-os todos, criando as muitas línguas que os impediram de se comunicar, e espalhou-os por todos os cantos da Terra. A ambição do nome, paradoxalmente, foi o que os tornou mais comuns do que já eram.
Logo em seguida a esse castigo, portanto, as criaturas que ali se encontravam passaram de um entendimento completo a uma completa confusão. Mães e filhos não mais se entendiam — pois Deus não estabeleceu a confusão segundo critérios lógico-operacionais —, maridos e mulheres perguntavam e não entendiam as respostas, vizinhos iniciaram disputas insolúveis e amigos se estranharam. As próprias pessoas que passaram a falar outras línguas a princípio não dominavam o que elas mesmas diziam, pois precisavam aprender os sons que saíam de suas bocas. Foi só pela convivência com outras pessoas que articulavam sons semelhantes que elas, pouco a pouco, começaram a decifrar o que falavam. Antes disso, precisaram sair à caça de seus pares, gritando palavras soltas para todos os lados e identificando-se das formas mais esdrúxulas, pois não tinham controle algum sobre o que diziam. O resultado foi que comunidades inteiras se formaram quase aleatoriamente, baseadas na articulação de sons comuns, que depois foram denominados de línguas. Nessas comunidades conviviam indivíduos antes inimigos, grupos majoritariamente masculinos ou femininos e inúmeros desequilíbrios que só foram se dissolvendo depois de muitas gerações.
No meio dessa barafunda toda, de pessoas falando sem saber o que diziam, de uns procurando por outros que articulavam os mesmo sons, de pais perdidos de filhos e patrões perdidos de criados, surgiu a necessidade urgente de uma função até então nunca imaginada: a tradução. Etimologicamente, ela não é mais do que o deslocamento de um objeto de um lugar para o outro. Pois era justamente isso o que faziam os tradutores que, rapidamente, apareceram aos montes na sequência da destruição da torre, desde os mais fajutos, que se aproveitaram da situação de balbúrdia e desespero, aos mais sérios, que realmente buscavam estabelecer melhor compreensão entre os perdidos. Esses tradutores basicamente transladavam pessoas de um lugar para o outro, fazendo-as encontrarem seus possíveis pares, a partir da identificação de sons semelhantes e possíveis significados. Também havia a necessidade, é claro, do deslocamento de objetos, pois, para muitas palavras desconhecidas, era preciso apontar ou mesmo trazer as coisas diante das pessoas, para que elas certificassem o significado do que diziam.
Um desses tradutores era chamado Natanael. Seu nome significa “presente de Deus” naquela língua única que todos anteriormente falavam e, por isso, ele foi um dos primeiros a entender o que se dizia nas várias línguas que subitamente emergiram. Natanael sempre tinha sido contra a construção da torre e, talvez por isso, Deus o tenha presenteado com uma capacidade singular de distinguir os sentidos das palavras.
Natanael, naquela tarde do dia fatídico, circulava freneticamente pelos escombros da torre e pelas ruas daquele vale de Sinar, ouvindo todos aqueles sons desconhecidos, aquelas pessoas enlouquecidas balbuciando absurdos, desesperadas procurando por seus familiares. Rapidamente, ele assimilou o que estava acontecendo e concebeu uma operação de salvamento. Começou a identificar semelhanças entre algumas palavras que iam sendo pronunciadas e, com isso, a agrupar as línguas em classes mais ou menos próximas umas das outras. Verificou aquelas em que predominavam as consoantes sibilantes, as fricativas, as guturais e as líquidas; outras em que as vogais pareciam mais importantes; algumas em que parecia quase não haver palavras qualificativas e outras em que elas abundavam; línguas em que o nome principal vinha somente no final da frase e outras em que ele vinha no começo; dialetos em que as palavras se aglutinavam, formando palavras gigantescas, que assustavam até os falantes e outros em que os vocábulos saíam rápidos, sumários, quase não ditos. Em menos de três dias, Natanael já tinha catalogado várias línguas, agrupadas em cinco classes distintas. Em cada um desses grupos, o tradutor foi reunindo falantes assemelhados, pedindo-lhes que se mantivessem próximos, falando entre eles o máximo que conseguissem, mesmo sem se entenderem. E foi um tal de apontar para cá, apontar para lá, risadas, choros, imprecações, orações, penitências, espancamentos e tanta correria, que Natanael quase desistiu muitas vezes da empreitada absurda que tinha concebido para si e para o mundo novo que se criava. Mas nada o fez desistir.
Depois de semanas e semanas de insistência e muitas brigas, ele já tinha chegado à seguinte lista: fenício, sumério, semítico, persa, bengali, acadiano, aramaico, babilônio, assírio e hitita.
Em cada uma dessas línguas, Natanael percebeu que havia palavras razoavelmente parecidas, algumas surpreendentemente iguais. Entre elas, por exemplo, estavam as palavras “mãe” e “mar”, que em todas as línguas tinham o som “m”; “vento”, sempre com sons que a ele se assemelhavam; “não” e “sim”, invariavelmente monossilábicas e com sons opostos; “trovão”, com um som trovejante, e muitas outras que imitavam os sons da natureza e dos instrumentos musicais. “É claro”, pensou Natanael. “Deus não teve tempo de elaborar tão bem as diferenças, e é isso que vai me permitir verter os significados de uma língua para a outra.” E foi justamente o que ele começou a fazer, estabelecendo, com isso, uma compreensão que parecia impossível entre todas aquelas pessoas que, aos poucos, passaram a se reconhecer e comunicar.
Gradualmente, não apenas ele, mas também outras pessoas, entre elas vários tradutores, começaram discretamente a se perguntar, em meio a todos os preparativos para as migrações que a partir dali aconteceriam, se a multiplicidade das línguas não tinha sido, no lugar de uma maldição, uma espécie de bênção. Pois foi por causa dela que os desentendidos principiaram a inventar alfabetos, escrever poemas, criar rezas, fazer imitações teatrais; por causa da confusão linguística foram criadas milhares de piadas e canções; surgiram as onomatopeias, as rimas e o esforço de compreender bem o que os outros diziam. É certo que também apareceram mais guerras, mais disputas de poder e todos os problemas decorrentes das brigas comerciais, mas isso tudo já havia mesmo antes do aparecimento das línguas.
Natanael, depois de alguns meses, quando as comunidades já haviam se espalhado por vários cantos do planeta, guardou seus pertences todos numa maleta, os papiros todos anotados, fechou-a com cuidado e partiu para uma expedição rumo ao desconhecido. Ele partia satisfeito. Iria encontrar, pelo mundo, milhares de palavras e de significados novos, sempre prontos para a tradução. Ele sabia ser impossível encontrar a tradução perfeita e que o ofício do tradutor está fadado ao fracasso. Mas ele também sabia que a própria língua é feita de imperfeições e preferia isso ao estado anterior, em que a compreensão plena entre as pessoas não permitia a invenção de significados novos.
Seria mesmo pecaminosa a soberba humana? E teria mesmo sido soberbo o desejo de construir a torre? Natanael não chegava a conclusão alguma, mas agradecia a Deus pela punição alcançada e aos homens pelo pecado cometido.

Noemi Jaffe, in Não está mais aqui quem falou

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