Antes da construção malsucedida da
Torre de Babel, falava-se uma única língua na Terra, muito
semelhante à do Jardim do Éden. No jardim, falavam-se basicamente
os substantivos próprios, que em tudo coincidiam com as coisas que
nomeavam. Por exemplo: a palavra cão era o próprio cão e não era
preciso qualificá-lo para se saber o tipo de cão, sua personalidade
e características. Dizer cão dizia tudo.
A construção da Torre de Babel durou
quarenta e três anos, até que Deus desceu ao local e, como punição
aos indivíduos que desejavam, com a torre, espalhar seu nome
e tornar-se famosos, confundiu-os todos, criando as muitas línguas
que os impediram de se comunicar, e espalhou-os por todos os cantos
da Terra. A ambição do nome, paradoxalmente, foi o que os tornou
mais comuns do que já eram.
Logo em seguida a esse castigo, portanto,
as criaturas que ali se encontravam passaram de um entendimento
completo a uma completa confusão. Mães e filhos não mais se
entendiam — pois Deus não estabeleceu a confusão segundo
critérios lógico-operacionais —, maridos e mulheres perguntavam e
não entendiam as respostas, vizinhos iniciaram disputas insolúveis
e amigos se estranharam. As próprias pessoas que passaram a falar
outras línguas a princípio não dominavam o que elas mesmas diziam,
pois precisavam aprender os sons que saíam de suas bocas. Foi só
pela convivência com outras pessoas que articulavam sons semelhantes
que elas, pouco a pouco, começaram a decifrar o que falavam. Antes
disso, precisaram sair à caça de seus pares, gritando palavras
soltas para todos os lados e identificando-se das formas mais
esdrúxulas, pois não tinham controle algum sobre o que diziam. O
resultado foi que comunidades inteiras se formaram quase
aleatoriamente, baseadas na articulação de sons comuns, que depois
foram denominados de línguas. Nessas comunidades conviviam
indivíduos antes inimigos, grupos majoritariamente masculinos ou
femininos e inúmeros desequilíbrios que só foram se dissolvendo
depois de muitas gerações.
No meio dessa barafunda toda, de pessoas
falando sem saber o que diziam, de uns procurando por outros que
articulavam os mesmo sons, de pais perdidos de filhos e patrões
perdidos de criados, surgiu a necessidade urgente de uma função até
então nunca imaginada: a tradução. Etimologicamente, ela não é
mais do que o deslocamento de um objeto de um lugar para o outro.
Pois era justamente isso o que faziam os tradutores que, rapidamente,
apareceram aos montes na sequência da destruição da torre, desde
os mais fajutos, que se aproveitaram da situação de balbúrdia e
desespero, aos mais sérios, que realmente buscavam estabelecer
melhor compreensão entre os perdidos. Esses tradutores basicamente
transladavam pessoas de um lugar para o outro, fazendo-as encontrarem
seus possíveis pares, a partir da identificação de sons
semelhantes e possíveis significados. Também havia a necessidade, é
claro, do deslocamento de objetos, pois, para muitas palavras
desconhecidas, era preciso apontar ou mesmo trazer as coisas diante
das pessoas, para que elas certificassem o significado do que diziam.
Um desses tradutores era chamado
Natanael. Seu nome significa “presente de Deus” naquela língua
única que todos anteriormente falavam e, por isso, ele foi um dos
primeiros a entender o que se dizia nas várias línguas que
subitamente emergiram. Natanael sempre tinha sido contra a construção
da torre e, talvez por isso, Deus o tenha presenteado com uma
capacidade singular de distinguir os sentidos das palavras.
Natanael, naquela tarde do dia fatídico,
circulava freneticamente pelos escombros da torre e pelas ruas
daquele vale de Sinar, ouvindo todos aqueles sons desconhecidos,
aquelas pessoas enlouquecidas balbuciando absurdos, desesperadas
procurando por seus familiares. Rapidamente, ele assimilou o que
estava acontecendo e concebeu uma operação de salvamento. Começou
a identificar semelhanças entre algumas palavras que iam sendo
pronunciadas e, com isso, a agrupar as línguas em classes mais ou
menos próximas umas das outras. Verificou aquelas em que
predominavam as consoantes sibilantes, as fricativas, as guturais e
as líquidas; outras em que as vogais pareciam mais importantes;
algumas em que parecia quase não haver palavras qualificativas e
outras em que elas abundavam; línguas em que o nome principal vinha
somente no final da frase e outras em que ele vinha no começo;
dialetos em que as palavras se aglutinavam, formando palavras
gigantescas, que assustavam até os falantes e outros em que os
vocábulos saíam rápidos, sumários, quase não ditos. Em menos de
três dias, Natanael já tinha catalogado várias línguas, agrupadas
em cinco classes distintas. Em cada um desses grupos, o tradutor foi
reunindo falantes assemelhados, pedindo-lhes que se mantivessem
próximos, falando entre eles o máximo que conseguissem, mesmo sem
se entenderem. E foi um tal de apontar para cá, apontar para lá,
risadas, choros, imprecações, orações, penitências,
espancamentos e tanta correria, que Natanael quase desistiu muitas
vezes da empreitada absurda que tinha concebido para si e para o
mundo novo que se criava. Mas nada o fez desistir.
Depois de semanas e semanas de
insistência e muitas brigas, ele já tinha chegado à seguinte
lista: fenício, sumério, semítico, persa, bengali, acadiano,
aramaico, babilônio, assírio e hitita.
Em cada uma dessas línguas, Natanael
percebeu que havia palavras razoavelmente parecidas, algumas
surpreendentemente iguais. Entre elas, por exemplo, estavam as
palavras “mãe” e “mar”, que em todas as línguas tinham o
som “m”; “vento”, sempre com sons que a ele se assemelhavam;
“não” e “sim”, invariavelmente monossilábicas e com sons
opostos; “trovão”, com um som trovejante, e muitas outras que
imitavam os sons da natureza e dos instrumentos musicais. “É
claro”, pensou Natanael. “Deus não teve tempo de elaborar tão
bem as diferenças, e é isso que vai me permitir verter os
significados de uma língua para a outra.” E foi justamente o que
ele começou a fazer, estabelecendo, com isso, uma compreensão que
parecia impossível entre todas aquelas pessoas que, aos poucos,
passaram a se reconhecer e comunicar.
Gradualmente, não apenas ele, mas também
outras pessoas, entre elas vários tradutores, começaram
discretamente a se perguntar, em meio a todos os preparativos para as
migrações que a partir dali aconteceriam, se a multiplicidade das
línguas não tinha sido, no lugar de uma maldição, uma espécie de
bênção. Pois foi por causa dela que os desentendidos principiaram
a inventar alfabetos, escrever poemas, criar rezas, fazer imitações
teatrais; por causa da confusão linguística foram criadas milhares
de piadas e canções; surgiram as onomatopeias, as rimas e o esforço
de compreender bem o que os outros diziam. É certo que também
apareceram mais guerras, mais disputas de poder e todos os problemas
decorrentes das brigas comerciais, mas isso tudo já havia mesmo
antes do aparecimento das línguas.
Natanael, depois de alguns meses, quando
as comunidades já haviam se espalhado por vários cantos do planeta,
guardou seus pertences todos numa maleta, os papiros todos anotados,
fechou-a com cuidado e partiu para uma expedição rumo ao
desconhecido. Ele partia satisfeito. Iria encontrar, pelo mundo,
milhares de palavras e de significados novos, sempre prontos para a
tradução. Ele sabia ser impossível encontrar a tradução perfeita
e que o ofício do tradutor está fadado ao fracasso. Mas ele também
sabia que a própria língua é feita de imperfeições e preferia
isso ao estado anterior, em que a compreensão plena entre as pessoas
não permitia a invenção de significados novos.
Seria mesmo pecaminosa a soberba humana?
E teria mesmo sido soberbo o desejo de construir a torre? Natanael
não chegava a conclusão alguma, mas agradecia a Deus pela punição
alcançada e aos homens pelo pecado cometido.
Noemi Jaffe, in Não está mais aqui quem falou
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