Ao amanhecer, fiz chegar a minha mãe a
mensagem de que Belonísia estava com primo Severo debaixo do
umbuzeiro na noite passada. Sem ter certeza do que vira, mas intuía,
adicionei à narrativa a visão de um beijo. Pela primeira vez vi os
olhos de minha mãe crisparem e, sem esperar explicações, antes que
meu pai soubesse, se encarregou da punição: uma surra de sandália.
Cada batida que ouvi Belonísia receber ardia em minha pele. Fui
invadida por uma estranha vontade de vingança, pela traição que vi
naquele ato, ao mesmo tempo em que doía em mim, por nunca ter visto
minha irmã apanhar, e porque, desde o acidente, nós havíamos
mantido uma relação de reciprocidade maior do que as gêmeas de
compadre Saturnino.
Até aquele instante Belonísia havia
sido mais próxima de minha mãe, enquanto eu sempre havia me sentido
mais ligada ao pai. Mas a surra repercutiu mais em seu íntimo do que
o ardor e o machucado na pele. Com medo da reação de meu pai, minha
mãe não compartilhou o ocorrido. Nunca soube ao certo, mas deve ter
dado um jeito de falar com tio Servó sobre o sucedido, de mandar um
recado por alguém ou algum bilhete, afinal ela sabia escrever. E
durante um tempo considerável não vimos Severo. Nem mesmo nas
brincadeiras de jarê que continuaram com a regularidade de sempre em
nossa casa.
Belonísia ficou por semanas sem me olhar
diretamente. Passava do quarto para a sala, ou mesmo para o quintal
ou terreiro, interagia com os outros irmãos, mas me ignorava. O
sentimento de decepção que eu tinha sobre o incidente aos poucos
foi se desfazendo diante da mágoa que ela externava. De repente,
senti um enorme pesar por ter feito minha mãe castigar Belonísia e,
ao mesmo tempo, por ter afastado, de forma involuntária e sem medir
as consequências, Severo de nossa convivência. A casa se tornou
mais silenciosa, apesar das traquinagens de Zezé – quando não
estava na roça com o pai – e Domingas, e do movimento de gente que
aparecia quase todos os dias procurando os préstimos do curador Zeca
Chapéu Grande. Vi também o remorso no semblante de minha mãe pelo
que tinha feito. Salu era enérgica, falava de forma firme e sem
hesitar, mas nunca tinha levantado a mão para bater em qualquer
filho, muito menos com uma sandália. Ela tentava reparar seu ímpeto
de correção oferecendo a Belonísia uma caneca de mingau antes de
qualquer um de nós, ou deixando para ela os trabalhos domésticos
menos fatigantes, como lavar a louça no jirau, enquanto para mim
destinava o carregamento de baldes de água do poço ou do rio.
Se minha irmã demonstrava desencanto em
relação à reação de nossa mãe, comigo ocorreu pior. O
sentimento que Belonísia me destinou naquelas semanas foi de total
desprezo. Ignorava qualquer gesto de aproximação que eu fazia, o
que só aumentava meu arrependimento. Era orgulhosa e conduzia muito
bem suas decisões, apesar da pouca idade. Eu não sabia o que havia
se passado naquele dia, o que a levou a estar a sós com Severo. Nós,
que compartilhávamos tudo sobre nossas vidas, nunca falamos sobre o
interesse que passamos a sentir desde a chegada de nosso primo.
Talvez houvesse o medo de nos desapontarmos mutuamente, já que era
notório, para nós duas, o encanto que nutríamos por ele. Talvez
fosse mais cômodo manter uma disputa velada, acreditando que nenhuma
de nós ultrapassaria a linha imaginária que traçamos para aquele
caso.
Tudo começou a mudar numa tarde, após
um temporal inesperado, quando minha mãe fechou a casa e nos levou
para o rio Santo Antônio, com latas e vara de pescar para capturar
os peixes que chegariam com a correnteza. Eu e Belonísia seguimos
afastadas, interagindo com Domingas, mas sem partilhar qualquer
comunicação. Nas primeiras vezes em que minha mãe enviava recado a
uma ou a outra, como sempre fizera, nos esquivávamos, e Domingas
assumia a função de replicar a informação. Quando minha mãe
percebeu o mal-estar que havia se introduzido entre nós, tratou de
repreender com rigor, que aquela não era a atitude de duas irmãs
que conviviam na mesma casa, que cresceram na mesma barriga e que
vieram ao mundo pelas mãos do encantado Velho Nagô. Que ela havia
parido irmãs, e não inimigas, e que não iria tolerar mais nossos
calundus. Era bom que voltássemos a nos comunicar porque não
admitiria malquerença entre suas filhas. Não houve contestação à
repreensão de nossa mãe, mas tampouco alguma reação de nossa
parte para reestabelecer nossa interação. Com um significativo
espaço de tempo desde o episódio da surra, passamos a nos comunicar
com os sorrisos que Domingas nos provocava, com sua curiosidade e com
as coisas que encontrava na estrada. Uma tangerina madura era
disputada pelas duas, e Domingas tentava me envolver também. Por
fim, Domingas dividia os gomos sumarentos para dizer que havia
degustado os maiores e os mais doces.
O rio estava com forte correnteza e minha
mãe nos levou para uma pequena lagoa, tributária das águas do
Santo Antônio. Passamos a cavar a terra molhada e retirar algumas
minhocas para servirem de isca. Domingas dizia que retirava as
maiores minhocas, ria das minhocas que Salu e eu retirávamos. Minha
mãe com suas mãos habilidosas transformava as pobres minhocas em
sanfonas encolhidas, com seus corpos transpassados pelo anzol. “Tá
parecendo São Sebastião”, e todas rimos juntas, menos minha mãe
que censurou “Não brinca com o Santo, Domingas. Onde já se viu?”.
A lagoa era lodosa. Sua superfície
estava repleta de algas verdes, mas a cheia tinha trazido peixes, que
fisgavam com rapidez as iscas. Domingas ia nomeando, com a ajuda da
mãe, a qualidade dos animais. Cascudo tem de monte. “Cascudo anda
em rebanho, Domingas.” “Cascudo tem pouco peixe” – queria
dizer pouca carne – “pega outro”, ria Domingas. “Cuide da sua
vara e do seu anzol”, dizia minha mãe, atenta ao céu, para saber
se viria mais chuva. “Beliscou, mãe”, Domingas arregalou os
olhos. Senti uma fisgada em minha linha também, e vi que Belonísia
levantava a vara dela. “Um apanharí”, disse minha mãe, “Segura,
Belonísia, esse vai pro almoço. Espera que te ajudo”, e correu
para ajudar a puxar. O meu se debatia tentando se desgarrar do anzol,
e Domingas se aproximou de mim. “Ajuda sua irmã, menina” –
orientou minha mãe enquanto tentava salvar o seu pescado. Quando
ergui o peixe, vivo, tentando retornar para a água para respirar, vi
Salu, satisfeita, identificar que era um molé e que o prepararia
cozido no dendê.
Passamos mais uma hora daquela manhã
capturando os peregrinos que chegavam à lagoa de Água Negra,
levados pela chuva. No retorno para casa, tínhamos que atravessar
novamente o lodaçal dos marimbus descalças. Nossas sandálias
grudavam na lama de tal forma que não conseguíamos erguê-la nos
pés. “Pisem devagar” – disse minha mãe, para que não nos
machucássemos em pedras e lascas de madeira que porventura
estivessem submersas naquele grande lago de lama para chegar à
estrada. De súbito, senti meu pé pisar em algo duro, e meu rosto se
contraiu de dor. Havia ferido meu pé, um corte profundo, com algo
parecendo um pedaço de louça. Belonísia, que estava mais perto de
mim, ajudou a levantar a perna, a chegar na estrada e retirou, com as
orientações gritadas por Salu, que atravessava com dificuldade o
charco, o objeto que havia cortado meu pé. “Não disse para terem
cuidado?” Era um casco de caramujo abandonado, quebrado, entranhado
como um espinho. Eu mesma não tive coragem de retirar, comecei a
chorar de dor. Belonísia me segurou e puxou de uma vez. Domingas,
que agora chegava mais perto, pedia “deixa eu ver, deixa eu ver”.
Fomos para a beira do rio para lavar os pés. Um sangue grosso e
substancioso deixava meu corpo pintando a terra com seu vermelho cor
de pássaro. Salu colheu uma erva, uma folha e outra, para esmagar
entre os dedos e pôr em cima do ferimento, até chegarmos à casa e
saber o que meu pai iria fazer.
Itamar Vieira Junior, in Torto Arado
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