quinta-feira, 11 de março de 2021

Torto Arado / 8

          Ao amanhecer, fiz chegar a minha mãe a mensagem de que Belonísia estava com primo Severo debaixo do umbuzeiro na noite passada. Sem ter certeza do que vira, mas intuía, adicionei à narrativa a visão de um beijo. Pela primeira vez vi os olhos de minha mãe crisparem e, sem esperar explicações, antes que meu pai soubesse, se encarregou da punição: uma surra de sandália. Cada batida que ouvi Belonísia receber ardia em minha pele. Fui invadida por uma estranha vontade de vingança, pela traição que vi naquele ato, ao mesmo tempo em que doía em mim, por nunca ter visto minha irmã apanhar, e porque, desde o acidente, nós havíamos mantido uma relação de reciprocidade maior do que as gêmeas de compadre Saturnino.
Até aquele instante Belonísia havia sido mais próxima de minha mãe, enquanto eu sempre havia me sentido mais ligada ao pai. Mas a surra repercutiu mais em seu íntimo do que o ardor e o machucado na pele. Com medo da reação de meu pai, minha mãe não compartilhou o ocorrido. Nunca soube ao certo, mas deve ter dado um jeito de falar com tio Servó sobre o sucedido, de mandar um recado por alguém ou algum bilhete, afinal ela sabia escrever. E durante um tempo considerável não vimos Severo. Nem mesmo nas brincadeiras de jarê que continuaram com a regularidade de sempre em nossa casa.
Belonísia ficou por semanas sem me olhar diretamente. Passava do quarto para a sala, ou mesmo para o quintal ou terreiro, interagia com os outros irmãos, mas me ignorava. O sentimento de decepção que eu tinha sobre o incidente aos poucos foi se desfazendo diante da mágoa que ela externava. De repente, senti um enorme pesar por ter feito minha mãe castigar Belonísia e, ao mesmo tempo, por ter afastado, de forma involuntária e sem medir as consequências, Severo de nossa convivência. A casa se tornou mais silenciosa, apesar das traquinagens de Zezé – quando não estava na roça com o pai – e Domingas, e do movimento de gente que aparecia quase todos os dias procurando os préstimos do curador Zeca Chapéu Grande. Vi também o remorso no semblante de minha mãe pelo que tinha feito. Salu era enérgica, falava de forma firme e sem hesitar, mas nunca tinha levantado a mão para bater em qualquer filho, muito menos com uma sandália. Ela tentava reparar seu ímpeto de correção oferecendo a Belonísia uma caneca de mingau antes de qualquer um de nós, ou deixando para ela os trabalhos domésticos menos fatigantes, como lavar a louça no jirau, enquanto para mim destinava o carregamento de baldes de água do poço ou do rio.
Se minha irmã demonstrava desencanto em relação à reação de nossa mãe, comigo ocorreu pior. O sentimento que Belonísia me destinou naquelas semanas foi de total desprezo. Ignorava qualquer gesto de aproximação que eu fazia, o que só aumentava meu arrependimento. Era orgulhosa e conduzia muito bem suas decisões, apesar da pouca idade. Eu não sabia o que havia se passado naquele dia, o que a levou a estar a sós com Severo. Nós, que compartilhávamos tudo sobre nossas vidas, nunca falamos sobre o interesse que passamos a sentir desde a chegada de nosso primo. Talvez houvesse o medo de nos desapontarmos mutuamente, já que era notório, para nós duas, o encanto que nutríamos por ele. Talvez fosse mais cômodo manter uma disputa velada, acreditando que nenhuma de nós ultrapassaria a linha imaginária que traçamos para aquele caso.
Tudo começou a mudar numa tarde, após um temporal inesperado, quando minha mãe fechou a casa e nos levou para o rio Santo Antônio, com latas e vara de pescar para capturar os peixes que chegariam com a correnteza. Eu e Belonísia seguimos afastadas, interagindo com Domingas, mas sem partilhar qualquer comunicação. Nas primeiras vezes em que minha mãe enviava recado a uma ou a outra, como sempre fizera, nos esquivávamos, e Domingas assumia a função de replicar a informação. Quando minha mãe percebeu o mal-estar que havia se introduzido entre nós, tratou de repreender com rigor, que aquela não era a atitude de duas irmãs que conviviam na mesma casa, que cresceram na mesma barriga e que vieram ao mundo pelas mãos do encantado Velho Nagô. Que ela havia parido irmãs, e não inimigas, e que não iria tolerar mais nossos calundus. Era bom que voltássemos a nos comunicar porque não admitiria malquerença entre suas filhas. Não houve contestação à repreensão de nossa mãe, mas tampouco alguma reação de nossa parte para reestabelecer nossa interação. Com um significativo espaço de tempo desde o episódio da surra, passamos a nos comunicar com os sorrisos que Domingas nos provocava, com sua curiosidade e com as coisas que encontrava na estrada. Uma tangerina madura era disputada pelas duas, e Domingas tentava me envolver também. Por fim, Domingas dividia os gomos sumarentos para dizer que havia degustado os maiores e os mais doces.
O rio estava com forte correnteza e minha mãe nos levou para uma pequena lagoa, tributária das águas do Santo Antônio. Passamos a cavar a terra molhada e retirar algumas minhocas para servirem de isca. Domingas dizia que retirava as maiores minhocas, ria das minhocas que Salu e eu retirávamos. Minha mãe com suas mãos habilidosas transformava as pobres minhocas em sanfonas encolhidas, com seus corpos transpassados pelo anzol. “Tá parecendo São Sebastião”, e todas rimos juntas, menos minha mãe que censurou “Não brinca com o Santo, Domingas. Onde já se viu?”.
A lagoa era lodosa. Sua superfície estava repleta de algas verdes, mas a cheia tinha trazido peixes, que fisgavam com rapidez as iscas. Domingas ia nomeando, com a ajuda da mãe, a qualidade dos animais. Cascudo tem de monte. “Cascudo anda em rebanho, Domingas.” “Cascudo tem pouco peixe” – queria dizer pouca carne – “pega outro”, ria Domingas. “Cuide da sua vara e do seu anzol”, dizia minha mãe, atenta ao céu, para saber se viria mais chuva. “Beliscou, mãe”, Domingas arregalou os olhos. Senti uma fisgada em minha linha também, e vi que Belonísia levantava a vara dela. “Um apanharí”, disse minha mãe, “Segura, Belonísia, esse vai pro almoço. Espera que te ajudo”, e correu para ajudar a puxar. O meu se debatia tentando se desgarrar do anzol, e Domingas se aproximou de mim. “Ajuda sua irmã, menina” – orientou minha mãe enquanto tentava salvar o seu pescado. Quando ergui o peixe, vivo, tentando retornar para a água para respirar, vi Salu, satisfeita, identificar que era um molé e que o prepararia cozido no dendê.
Passamos mais uma hora daquela manhã capturando os peregrinos que chegavam à lagoa de Água Negra, levados pela chuva. No retorno para casa, tínhamos que atravessar novamente o lodaçal dos marimbus descalças. Nossas sandálias grudavam na lama de tal forma que não conseguíamos erguê-la nos pés. “Pisem devagar” – disse minha mãe, para que não nos machucássemos em pedras e lascas de madeira que porventura estivessem submersas naquele grande lago de lama para chegar à estrada. De súbito, senti meu pé pisar em algo duro, e meu rosto se contraiu de dor. Havia ferido meu pé, um corte profundo, com algo parecendo um pedaço de louça. Belonísia, que estava mais perto de mim, ajudou a levantar a perna, a chegar na estrada e retirou, com as orientações gritadas por Salu, que atravessava com dificuldade o charco, o objeto que havia cortado meu pé. “Não disse para terem cuidado?” Era um casco de caramujo abandonado, quebrado, entranhado como um espinho. Eu mesma não tive coragem de retirar, comecei a chorar de dor. Belonísia me segurou e puxou de uma vez. Domingas, que agora chegava mais perto, pedia “deixa eu ver, deixa eu ver”. Fomos para a beira do rio para lavar os pés. Um sangue grosso e substancioso deixava meu corpo pintando a terra com seu vermelho cor de pássaro. Salu colheu uma erva, uma folha e outra, para esmagar entre os dedos e pôr em cima do ferimento, até chegarmos à casa e saber o que meu pai iria fazer.

Itamar Vieira Junior, in Torto Arado

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