domingo, 14 de março de 2021

Será isso então que chamamos liberdade?

          Zorba, sentado à minha frente, bebericava voluptuosamente seu café. Besuntava seu pão com manteiga e mel e comia. Seu rosto pouco a pouco clareou, suas feições se compuseram, os traços de sua boca se adoçaram. Olhava-o disfarçadamente, enquanto ele saía lentamente do sono que o envolvia como uma luva e seus olhos brilhavam cada vez mais.
Ele acendeu um cigarro, tragou com prazer e, de suas narinas peludas, expulsou nuvens de fumaça azulada. Dobrou sua perna direita sob o corpo, acomodando-se à oriental. Agora era-lhe mais fácil falar.
Se esta é a primeira vez que venho a Creta? — começou ele... (Fechou ao meio seus olhos e olhou ao longe, pela escotilha, o Monte Ida que se esfumava atrás de nós). — não, não é a primeira vez. Em 1896, eu já era homem feito. Meu bigode e meus cabelos eram de sua cor verdadeira, negros como um corvo. Tinha ainda meus trinta e dois dentes, e quando me dava fome comia primeiro a comida e depois o prato. Mas, exatamente nesse tempo, quis o Diabo que estourasse uma revolução em Creta. Eu era então um mascate na Macedônia. Ia de aldeia em aldeia, vendendo miudezas, e em vez de dinheiro pedia em pagamento queijo, lã, manteiga, coelhos, milho; depois revendia tudo isso e ganhava em dobro. À noite, não importa em que aldeia chegasse, sabia onde me alojar. Em todas as aldeias há sempre uma viúva complacente. Eu lhe dava um carretel, uma travessa de cabelo, ou um lenço — tinha que ser preto, por causa do falecido — e dormia com ela. Não era caro! Nada cara a boa vida, patrão. Mas, como eu dizia, eis que Creta entra de novo em pé de guerra. Bah! Porcaria de vida! Disse comigo mesmo. Essa Creta não nos deixará nunca em paz. Ponho de lado os carretéis e as travessas, pego um fuzil, junto-me a um grupo e tocamos para Creta.
Zorba se calou. Costeávamos agora uma baía arredondada com uma praia ao fundo, tranquila. As ondas desciam lentamente, sem se quebrar, e depositavam apenas uma leve espuma ao longo da faixa de areia. As nuvens se haviam dispersado, o sol brilhava e Creta, áspera, sorria, acalmada.
Zorba se voltou e me lançou um olhar brincalhão.
Então você acredita, patrão, que eu vá agora fazer contas das cabeças turcas que cortei, e das orelhas turcas que guardei em álcool — é esse costume de Creta... Pois bem, não direi nada! Isso me aborrece e me envergonhada. Que raiva era essa, pergunto-me agora que tenho um pouco de miolo na cabeça, que raiva era essa? A gente se atira sobre um homem que não nos fez nada, morde, corta seu nariz, arranca-lhe as orelhas, abre sua barriga e tudo isso pedindo a ajuda de Deus. Quer dizer, pede-se a Ele que também corte narizes e orelhas e abra barrigas. — Mas, naquela época, você sabe, tinha o sangue quente. Não ficava dissecando o problema. Para pensar justa e honestamente o que é preciso é calma e idade, e não dentes. Quando não se tem mais dentes é fácil dizer: “Que vergonha, não mordam!” Mas, quando se tem trinta e dois dentes... O homem quando é jovem é um animal feroz; sim, patrão, um animal feroz que devora os homens!
Balançou a cabeça.
Ele come também carneiro, galinha, porco, mas se ele não devora um homem, ele não se satisfaz. Acrescentou, esmagando o cigarro no pires de sua xícara de café: — Não, ele não se satisfaz. Que diz de tudo isso, grande sábio?
Mas, sem esperar resposta:
Que pode você dizer — falou ele, pesando-me com seu olhar... — ao que sei vossa senhoria nunca teve fome, nunca matou, nunca roubou, nunca dormiu com a mulher do outro. Portanto, o que pode saber do mundo? Miolo de inocente, pele que não conhece o sol... — murmurou com desprezo evidente.
E eu tive vergonha de minhas mãos delicadas, de meu rosto pálido, e de minha vida não respingada de sangue e de lama.
Está bem! — disse Zorba, passando sua pesada mão pela mesa, como se estivesse apagando alguma coisa com uma esponja. — está bem! Mesmo assim, queria perguntar-lhe uma coisa. Você deve ter folheado muitos livros, talvez você saiba...
Diga Zorba, o quê?
É engraçado, patrão... É muito engraçado, e isso me desorienta. Essas patifarias, roubos, carnificinas que cometemos, nós os rebeldes, trouxeram o príncipe George a Creta. A liberdade!
Ele me olhou com olhos arregalados, estupefatos.
É um mistério — murmurou. — um grande mistério! Então, para que a liberdade chegue ao mundo são necessárias tantas mortes e patifarias? Se eu lhe contasse agora os crimes e enormidades que se cometem, você ficaria com os cabelos em pé. E, no entanto, qual foi o resultado de tudo isso? A liberdade! Não compreendo mais nada!
Olhou-me como quem pedisse socorro. Era evidente que esse problema o atormentava, a ponto de não poder mais suportá-lo.
Você compreende, patrão? — perguntou com angústia.
Como compreender? O que responder? Ou aquilo a que chamamos Deus não existe; ou aquilo a que chamamos crimes e enormidades é necessário à libertação do mundo...
Esforcei-me em encontrar para Zorba uma explicação simples.
Como uma flor pode germinar e crescer sobre o lixo e o esterco? Pode-se dizer, Zorba, que o homem é o lixo e o esterco, e que a liberdade é a flor.
Mas, a semente? — disse Zorba batendo na mesa com o punho fechado. — para que a flor possa nascer, é preciso a semente. E quem botou uma semente como a liberdade em nossas entranhas sujas? E por que essa semente não floresce com a bondade e a retidão? Por que precisa do sangue e do lixo?
Balancei a cabeça.
Não sei — disse-lhe.
Quem sabe, então?
Ninguém.
Mas então — gritou Zorba em desespero, olhando selvagemente em torno de si, — para que servem esses navios, essas máquinas, esses colarinhos?
Dois ou três passageiros maltratados pelo mar, que bebiam seu café em uma mesa próxima, se animaram. Haviam pressentido uma discussão, e passaram a acompanhá-la.
Isso não agradou a Zorba, que baixou a voz.
Deixemos isso tudo de lado — disse ele. — quando eu penso nisso tenho vontade de quebrar tudo que estiver ao alcance de minha mão: cadeira, lampião, ou mesmo a minha cabeça na parede mais próxima. E, depois, que terei conseguido? O Diabo que me carregue! Pago os estragos que fiz, ou vou para a farmácia para enrolarem minha cabeça em ataduras. E se o bom Deus existe mesmo, ainda será pior: estamos fritos! Deve olhar para mim das alturas e torcer-se de rir.
Sacudiu a mão como para espantar uma mosca inoportuna.
Enfim! — disse ele aborrecido. — o que eu queria dizer é o seguinte: quando o navio real chegou, todo paramentado, e começaram as salvas de canhão, e o príncipe botou o pé em Creta... Você já viu alguma vez o povo inteiro enlouquecer ao reencontrar sua liberdade? Não? Eh! Então, pobre patrão meu, você nasceu cego e vai morrer cego. Pois mesmo que eu viva mil anos, e mesmo que não sobre de mim senão uma posta de carne viva, não esquecerei jamais o que vi naquele dia. E se cada homem pudesse escolher seu próprio paraíso no céu, de acordo com seus gostos — e é assim que deveria ser: é isso que eu chamo paraíso — eu diria ao bom Deus: “Senhor, quero como meu paraíso uma Creta pavimentada de flores e coberta de bandeiras defraudadas, e que dure por séculos o minuto em que o príncipe George pousou seu pé em terras de Creta. Isso me basta.”
Zorba, calou-se de novo. Ajeitou seus bigodes, encheu um copo de água gelada até transbordar e tomou-o de um só gole.
O que passou em Creta, Zorba? Conte-me!
Não adianta ficarmos agora a fazer frases — disse Zorba enervado. — basta que eu diga que esse mundo é um mistério e que o homem não é outra coisa senão uma grande fera. Uma grande fera e um grande Deus. Um imbecil que havia vindo da Macedônia para juntar-se aos rebeldes, Yorga chamava-se ele, e era um porco imundo. Pois bem, ele se põe a chorar, por que está chorando, maldito Yorga? Pergunto-lhe, chorando eu também como uma cascata. Por que está chorando, porco? E ele se atira sobre mim, chorando como criança, e me dá dois beijos. Depois, esse grande patife tira sua bolsa, derrama sobre seus joelhos as moedas de ouro que havia roubado aos turcos, e joga-as para o ar, em punhados. Você compreende, patrão, isso é que é liberdade!
Levantei-me e subi ao tombadilho para sentir o vento áspero do mar castigar-me as faces.
Isso é que é liberdade, pensei eu. Ter uma paixão, acumular moedas de ouro e, subitamente, vencer a paixão e espalhar seu tesouro aos quatro ventos. Libertar-se de uma paixão para servir a outra, mais nobre. Mas isso também não é uma forma de escravatura? Sacrificar-se por uma ideia, por sua raça, por Deus? Ou será que quanto mais alto está o patrão, mais longa se torna a corda da escravatura? O escravo pode então agitar-se em uma arena mais espaçosa, e morrerá sem nunca ter encontrado a corda. Será isso então que chamamos liberdade?

Nikos Kazantzakis, in Zorba, O Grego

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