Zorba, sentado à minha frente,
bebericava voluptuosamente seu café. Besuntava seu pão com manteiga
e mel e comia. Seu rosto pouco a pouco clareou, suas feições se
compuseram, os traços de sua boca se adoçaram. Olhava-o
disfarçadamente, enquanto ele saía lentamente do sono que o
envolvia como uma luva e seus olhos brilhavam cada vez mais.
Ele acendeu um cigarro, tragou com prazer
e, de suas narinas peludas, expulsou nuvens de fumaça azulada.
Dobrou sua perna direita sob o corpo, acomodando-se à oriental.
Agora era-lhe mais fácil falar.
— Se esta é a primeira vez que venho a
Creta? — começou ele... (Fechou ao meio seus olhos e olhou ao
longe, pela escotilha, o Monte Ida que se esfumava atrás de nós). —
não, não é a primeira vez. Em 1896, eu já era homem feito. Meu
bigode e meus cabelos eram de sua cor verdadeira, negros como um
corvo. Tinha ainda meus trinta e dois dentes, e quando me dava fome
comia primeiro a comida e depois o prato. Mas, exatamente nesse
tempo, quis o Diabo que estourasse uma revolução em Creta. Eu era
então um mascate na Macedônia. Ia de aldeia em aldeia, vendendo
miudezas, e em vez de dinheiro pedia em pagamento queijo, lã,
manteiga, coelhos, milho; depois revendia tudo isso e ganhava em
dobro. À noite, não importa em que aldeia chegasse, sabia onde me
alojar. Em todas as aldeias há sempre uma viúva complacente. Eu lhe
dava um carretel, uma travessa de cabelo, ou um lenço — tinha que
ser preto, por causa do falecido — e dormia com ela. Não era caro!
Nada cara a boa vida, patrão. Mas, como eu dizia, eis que Creta
entra de novo em pé de guerra. Bah! Porcaria de vida! Disse comigo
mesmo. Essa Creta não nos deixará nunca em paz. Ponho de lado os
carretéis e as travessas, pego um fuzil, junto-me a um grupo e
tocamos para Creta.
Zorba se calou. Costeávamos agora uma
baía arredondada com uma praia ao fundo, tranquila. As ondas desciam
lentamente, sem se quebrar, e depositavam apenas uma leve espuma ao
longo da faixa de areia. As nuvens se haviam dispersado, o sol
brilhava e Creta, áspera, sorria, acalmada.
Zorba se voltou e me lançou um olhar
brincalhão.
— Então você acredita, patrão, que
eu vá agora fazer contas das cabeças turcas que cortei, e das
orelhas turcas que guardei em álcool — é esse costume de Creta...
Pois bem, não direi nada! Isso me aborrece e me envergonhada. Que
raiva era essa, pergunto-me agora que tenho um pouco de miolo na
cabeça, que raiva era essa? A gente se atira sobre um homem que não
nos fez nada, morde, corta seu nariz, arranca-lhe as orelhas, abre
sua barriga e tudo isso pedindo a ajuda de Deus. Quer dizer, pede-se
a Ele que também corte narizes e orelhas e abra barrigas. — Mas,
naquela época, você sabe, tinha o sangue quente. Não ficava
dissecando o problema. Para pensar justa e honestamente o que é
preciso é calma e idade, e não dentes. Quando não se tem mais
dentes é fácil dizer: “Que vergonha, não mordam!” Mas, quando
se tem trinta e dois dentes... O homem quando é jovem é um animal
feroz; sim, patrão, um animal feroz que devora os homens!
Balançou a cabeça.
— Ele come também carneiro, galinha,
porco, mas se ele não devora um homem, ele não se satisfaz.
Acrescentou, esmagando o cigarro no pires de sua xícara de café: —
Não, ele não se satisfaz. Que diz de tudo isso, grande sábio?
Mas, sem esperar resposta:
— Que pode você dizer — falou ele,
pesando-me com seu olhar... — ao que sei vossa senhoria nunca teve
fome, nunca matou, nunca roubou, nunca dormiu com a mulher do outro.
Portanto, o que pode saber do mundo? Miolo de inocente, pele que não
conhece o sol... — murmurou com desprezo evidente.
E eu tive vergonha de minhas mãos
delicadas, de meu rosto pálido, e de minha vida não respingada de
sangue e de lama.
— Está bem! — disse Zorba, passando
sua pesada mão pela mesa, como se estivesse apagando alguma coisa
com uma esponja. — está bem! Mesmo assim, queria perguntar-lhe uma
coisa. Você deve ter folheado muitos livros, talvez você saiba...
— Diga Zorba, o quê?
— É engraçado, patrão... É muito
engraçado, e isso me desorienta. Essas patifarias, roubos,
carnificinas que cometemos, nós os rebeldes, trouxeram o príncipe
George a Creta. A liberdade!
Ele me olhou com olhos arregalados,
estupefatos.
— É um mistério — murmurou. — um
grande mistério! Então, para que a liberdade chegue ao mundo são
necessárias tantas mortes e patifarias? Se eu lhe contasse agora os
crimes e enormidades que se cometem, você ficaria com os cabelos em
pé. E, no entanto, qual foi o resultado de tudo isso? A liberdade!
Não compreendo mais nada!
Olhou-me como quem pedisse socorro. Era
evidente que esse problema o atormentava, a ponto de não poder mais
suportá-lo.
— Você compreende, patrão? —
perguntou com angústia.
Como compreender? O que responder? Ou
aquilo a que chamamos Deus não existe; ou aquilo a que chamamos
crimes e enormidades é necessário à libertação do mundo...
Esforcei-me em encontrar para Zorba uma
explicação simples.
— Como uma flor pode germinar e crescer
sobre o lixo e o esterco? Pode-se dizer, Zorba, que o homem é o lixo
e o esterco, e que a liberdade é a flor.
— Mas, a semente? — disse Zorba
batendo na mesa com o punho fechado. — para que a flor possa
nascer, é preciso a semente. E quem botou uma semente como a
liberdade em nossas entranhas sujas? E por que essa semente não
floresce com a bondade e a retidão? Por que precisa do sangue e do
lixo?
Balancei a cabeça.
— Não sei — disse-lhe.
— Quem sabe, então?
— Ninguém.
— Mas então — gritou Zorba em
desespero, olhando selvagemente em torno de si, — para que servem
esses navios, essas máquinas, esses colarinhos?
Dois ou três passageiros maltratados
pelo mar, que bebiam seu café em uma mesa próxima, se animaram.
Haviam pressentido uma discussão, e passaram a acompanhá-la.
Isso não agradou a Zorba, que baixou a
voz.
— Deixemos isso tudo de lado — disse
ele. — quando eu penso nisso tenho vontade de quebrar tudo que
estiver ao alcance de minha mão: cadeira, lampião, ou mesmo a minha
cabeça na parede mais próxima. E, depois, que terei conseguido? O
Diabo que me carregue! Pago os estragos que fiz, ou vou para a
farmácia para enrolarem minha cabeça em ataduras. E se o bom Deus
existe mesmo, ainda será pior: estamos fritos! Deve olhar para mim
das alturas e torcer-se de rir.
Sacudiu a mão como para espantar uma
mosca inoportuna.
— Enfim! — disse ele aborrecido. —
o que eu queria dizer é o seguinte: quando o navio real chegou, todo
paramentado, e começaram as salvas de canhão, e o príncipe botou o
pé em Creta... Você já viu alguma vez o povo inteiro enlouquecer
ao reencontrar sua liberdade? Não? Eh! Então, pobre patrão meu,
você nasceu cego e vai morrer cego. Pois mesmo que eu viva mil anos,
e mesmo que não sobre de mim senão uma posta de carne viva, não
esquecerei jamais o que vi naquele dia. E se cada homem pudesse
escolher seu próprio paraíso no céu, de acordo com seus gostos —
e é assim que deveria ser: é isso que eu chamo paraíso — eu
diria ao bom Deus: “Senhor, quero como meu paraíso uma Creta
pavimentada de flores e coberta de bandeiras defraudadas, e que dure
por séculos o minuto em que o príncipe George pousou seu pé em
terras de Creta. Isso me basta.”
Zorba, calou-se de novo. Ajeitou seus
bigodes, encheu um copo de água gelada até transbordar e tomou-o de
um só gole.
— O que passou em Creta, Zorba?
Conte-me!
— Não adianta ficarmos agora a fazer
frases — disse Zorba enervado. — basta que eu diga que esse mundo
é um mistério e que o homem não é outra coisa senão uma grande
fera. Uma grande fera e um grande Deus. Um imbecil que havia vindo da
Macedônia para juntar-se aos rebeldes, Yorga chamava-se ele, e era
um porco imundo. Pois bem, ele se põe a chorar, por que está
chorando, maldito Yorga? Pergunto-lhe, chorando eu também como uma
cascata. Por que está chorando, porco? E ele se atira sobre mim,
chorando como criança, e me dá dois beijos. Depois, esse grande
patife tira sua bolsa, derrama sobre seus joelhos as moedas de ouro
que havia roubado aos turcos, e joga-as para o ar, em punhados. Você
compreende, patrão, isso é que é liberdade!
Levantei-me e subi ao tombadilho para
sentir o vento áspero do mar castigar-me as faces.
Isso é que é liberdade, pensei eu. Ter
uma paixão, acumular moedas de ouro e, subitamente, vencer a paixão
e espalhar seu tesouro aos quatro ventos. Libertar-se de uma paixão
para servir a outra, mais nobre. Mas isso também não é uma forma
de escravatura? Sacrificar-se por uma ideia, por sua raça, por Deus?
Ou será que quanto mais alto está o patrão, mais longa se torna a
corda da escravatura? O escravo pode então agitar-se em uma arena
mais espaçosa, e morrerá sem nunca ter encontrado a corda. Será
isso então que chamamos liberdade?
Nikos Kazantzakis, in Zorba, O Grego
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