domingo, 21 de março de 2021

Quando o inexplicável acontece contigo

          Imagino que muitos leitores tenham tido uma ou mais daquelas experiências misteriosas, coisas que ocorrem nas nossas vidas que parecem desafiar qualquer explicação racional. Vemos algo estranho, ou testemunhamos eventos que parecem violar as leis da Natureza, às vezes até evocando o sobrenatural; ou experimentamos emoções extremas, uma conexão com algo maior do que nós, inescrutável, uma transcendência momentânea onde vislumbramos algo além de nossa existência, algo que merece ser atribuído ao divino. O que são esses eventos e experiências? O que estão tentando nos dizer? Um racionalista tende a reagir a esse tipo de situação com certo desdém, desmentindo-a imediatamente como uma coincidência sem qualquer significado mais profundo. Em geral, o cético cita a lei dos grandes números: quando bilhões de pessoas passam por dezenas de bilhões de experiências diariamente, é razoável a probabilidade de que alguns sejam expostos a situações tão raras e bizarras que, ao menos na superfície, possam parecer inexplicáveis.
A professora de antropologia da Universidade de Stanford, na Califórnia, Tanya Luhrmann, que também contribui regularmente para o New York Times, é o que podemos chamar de uma especialista na “experiência do sagrado”, o que o grande psicólogo e filósofo americano William James considera a essência da religiosidade humana. Luhrmann é autora de diversos livros sobre o assunto, com títulos como Quando Deus responde ou Alucinações e sobrecarga sensorial. Em um de seus textos para o New York Times, Luhrmann reconta um episódio que ocorreu quando era ainda estudante de pós-graduação na Inglaterra, uma dessas experiências que ameaçaria sua construção racional da realidade, que sempre supôs seguir leis físicas de causa e efeito bem definidas.
Numa viagem de trem em direção ao norte da Inglaterra para entrevistar um grupo de pessoas que praticava uma forma de mágica que, segundo eles, era bem poderosa, Luhrmann começou a se sentir estranha: Estava lendo um livro escrito por um homem que os membros do grupo consideram um “adepto”, alguém com conhecimento e domínio profundo dos ritos mágicos. Quando tentava entender como essa pessoa se imagina sendo veículo desses poderes especiais, comecei a sentir algo estranho pulsando nas minhas veias, uma espécie de energia que emanava do meu corpo. Senti isso de verdade, visceralmente, e não apenas na minha imaginação. Comecei a sentir calor. Estava completamente desperta, mais alerta do que sou em geral. Tive a sensação de estar intensamente viva. Essa sensação de energia ocupou meu corpo, viajando através dele como água fluindo num rio. Tive vontade de cantar. De repente, vi fumaça saindo da minha mochila, onde havia guardado o farol da minha bicicleta.
Quando fui examiná-lo, percebi que uma das lâmpadas havia derretido, mesmo estando apagada. Segundo o relato de Luhrmann, “apesar de a experiência não ter mudado minha concepção da realidade, saí do trem com respeito renovado pelas pessoas que acreditam nesse tipo de mágica. Com frequência, pessoas têm experiências incríveis, que anotam numa lista de eventos que não podem explicar, e logo são esquecidos num canto da memória”. No mesmo artigo, Luhrmann menciona Michael Shermer, autor de vários livros e editor da Skeptic Magazine (Revista dos Céticos), racionalista de renome, que também teve suas crenças abaladas por um desses episódios. Michael é um conhecido meu, e posso atestar que defende sua racionalidade com unhas e dentes. Eis sua história, que relata em sua coluna na Scientific American.
Algumas semanas antes de casar com uma moça alemã, Michael recebeu vários pertences da noiva despachados pelo correio em caixas. Entre eles, um rádio bem velho, quebrado, que havia pertencido ao avô dela, falecido há muitos anos. Esse avô foi muito importante para ela, a figura paterna de maior influência na sua vida. Apesar de muitas tentativas, Shermer não conseguiu consertar o rádio. O casal acabou deixando o rádio de lado, esquecido numa gaveta no quarto. No dia do casamento, que ocorreu na casa de Shermer, uma música começou a tocar no segundo andar.
Após investigar várias fontes possíveis, laptops, iPhones etc., Shermer e a noiva descobriram boquiabertos que a música vinha do rádio, como se tivesse retornado ao mundo dos vivos. “Meu avô está aqui com a gente”, disse a moça, aos prantos. “Não estou sozinha!” Michael e sua esposa deixaram o rádio tocar a noite inteira. No dia seguinte, tão misteriosamente como havia começado, o rádio parou de funcionar. Eu também tive uma experiência dessas (mais de uma, na verdade), que conto em detalhes em meu livro A simples beleza do inesperado, no capítulo “A Bruxa de Copacabana”. Eis um resumo.
Quando eu tinha 17 anos, crescendo no Rio de Janeiro, meus pais adoravam receber amigos para jantar. Meu pai era dentista e tinha acabado de acolher no consultório um grupo grande de imigrantes portugueses, a maioria deles bem rica (e de direita), que haviam fugido da Revolução dos Cravos em 1974. Numa dessas ocasiões, o convidado de honra foi o senhor João Rosas, ex-ministro da Justiça, entre outros amigos. Meu pai, um anfitrião impecável, ofereceu uísque ao ex-ministro. Após tomar um gole, o digno senhor olhou para meu pai com uma expressão perplexa. “Ó Izaac, isto aqui não é uísque; é chá!” Meu pai pegou o copo do senhor Rosas, boquiaberto. “Volto num instante”, disse. Foi correndo até o armário onde guardava as bebidas e confirmou, para sua surpresa, que todas as garrafas abertas com bebida cor de âmbar continham chá e não uísque, conhaque, rum etc. Furioso, foi até a cozinha atrás de Maria, nossa cozinheira, uma senhora negra de 50 e tantos anos, de porte inabalável.
Lá estava ela, olhos tão escuros que era fácil se perder dentro deles, debruçando-se sobre uma panela de feijão com seu turbante branco. A gente sabia que Maria era mãe de santo, e das boas, daquelas que “recebem” espíritos durante rituais nos terreiros de macumba. Maria fez pouco caso das acusações do meu pai, confessando no ato. “Pois bem, dona Maria, amanhã de manhã, a senhora pode arrumar as malas e ir embora!”, rugiu meu pai, eu do seu lado. “Eu vou, senhor, mas algo muito ruim vai acontecer nesta casa!” Uma maldição! Meu pai deu um passo para trás e pôs a mão no bolso esquerdo, onde levava sempre um dente de alho, só por via das dúvidas. Olhei para Maria, horrorizado. “Você, meu filho, não se preocupe não. Você tem corpo fechado e nada te fará mal.” Meu pai, um homem supersticioso, tomou suas precauções.
Dobrou o número de dentes de alho que carregava no bolso e encheu a casa com pés de arruda, que ele julgava ser uma espécie de barômetro clorofílico do mal. Um mês passou e nada de estranho ocorreu. Contratamos outra cozinheira e a família retomou a rotina. Até que, um dia, quando estudava matemática para o vestibular, senti um calafrio e uma compulsão de ir até a sala de jantar. Lá, tínhamos uma longa mesa de jantar, flanqueada num dos extremos por um armário onde meus pais guardavam seus cálices de cristal da Boêmia, antiguidades belíssimas que haviam ganhado de meus avôs. Eram três prateleiras de cristal, cada uma contendo em torno de dez ou doze desses cálices preciosos.
Na outra extremidade da mesa, tínhamos um daqueles carrinhos de bebidas de bronze, com garrafas de cristal sobre uma prateleira de vidro, cada uma com uma coleira de prata revelando o conteúdo: licores coloridos, vinho do Porto, Cointreau etc. Estava em pé ao lado da mesa de jantar meio distraído quando algo me fez olhar para o armário de bebidas. De repente, a prateleira superior rachou ao meio, e os copos despencaram sobre a prateleira abaixo, que, por sua vez, caiu sobre a prateleira inferior, causando uma avalanche ensurdecedora de cristal se estilhaçando em mil pedaços.
Em segundos, dezenas de cálices belíssimos foram destruídos. Mal pisquei os olhos, quando ouvi outro barulho de vidro quebrando. Olhei na direção oposta da mesa e a prateleira do carrinho também quebrou, levando com ela todas as garrafas de cristal. Parecia uma bomba explodindo. Fiquei olhando a cena, paralisado, não sei por quanto tempo. A cozinheira nova veio correndo, se benzeu e voltou correndo para a cozinha. Foi embora naquela noite, dizendo que a casa era mal-assombrada. Tremendo dos pés à cabeça, liguei para o consultório do meu pai. “É a maldição, pai. Ela quebrou tudo, bem na minha frente. O armário, o carrinho, tudo despencou quase ao mesmo tempo!” Durante muito tempo, tentei explicar o que ocorreu. Um avião supersônico passou perto; um terremoto; alguma vibração na frequência ressonante do cristal; talvez estivesse em algum tipo de transe hipnótico e quebrei tudo. Mas nada fazia sentido. Um evento, tudo bem. Mas os dois, quase em sincronia perfeita? E envolvendo bebidas alcoólicas, como deveria ser?
Esta é uma ocorrência na minha vida que permanecerá inexplicável. As pessoas reagem de modo diverso quando passam por situações estranhas como essa. Alguns estão convictos de que é evidência da ação de entidades sobrenaturais, e adotam alguma religião (o evento pode até provocar uma conversão religiosa) ou prática mística. Outros, talvez temendo o que esse tipo de ocorrência representa dentro de sua visão de mundo, decidem que é apenas uma coincidência rara, de baixa probabilidade, sem grandes mistérios. Afirmam, sem muita convicção, que esse tipo de história, por mais bizarra que seja, é algo que ocorre de vez em quando na vida das pessoas, sem a necessidade de ser atribuída a alguma dimensão intangível da existência. No meu caso, permaneço agnóstico. Sendo um cientista, sei bem que a Natureza tende a seguir regras precisas.
Conhecemos algumas delas, que usamos para descrever um enorme número de fenômenos naturais, dos átomos às galáxias. Entretanto, sei também que estamos cercados pelo desconhecido, por mistérios que permanecem inescrutáveis. O projeto científico é uma tentativa de elucidar alguns desses mistérios, algo que a ciência faz com enorme sucesso. Porém, existirá sempre algo que nos escapa. Muitos veem isso como uma derrota da razão. Grande equívoco. Um pouco de inexplicável na vida é inevitável. E muito bem-vindo. Ao examinarmos os muitos níveis da realidade, é preciso manter a mente aberta, deixando sempre espaço para nos surpreender com o inesperado. Aprendemos mais a cada dia, mas aprendemos também a ter humildade perante o tanto que não sabemos ou podemos saber. Precisamos aprender a celebrar o mistério.
Nem tudo precisa ser explicado, nem toda pergunta precisa ter resposta. Se tudo fizesse sentido, a vida seria muito sem graça. Um pouco de inexplicável faz bem, nos deixa um pouco inseguros, nos convidando a imaginar o que pode existir além do possível.

Marcelo Gleiser, in O caldeirão azul

Nenhum comentário:

Postar um comentário