Imagino que muitos leitores tenham tido
uma ou mais daquelas experiências misteriosas, coisas que ocorrem
nas nossas vidas que parecem desafiar qualquer explicação racional.
Vemos algo estranho, ou testemunhamos eventos que parecem violar as
leis da Natureza, às vezes até evocando o sobrenatural; ou
experimentamos emoções extremas, uma conexão com algo maior do que
nós, inescrutável, uma transcendência momentânea onde
vislumbramos algo além de nossa existência, algo que merece ser
atribuído ao divino. O que são esses eventos e experiências? O que
estão tentando nos dizer? Um racionalista tende a reagir a esse tipo
de situação com certo desdém, desmentindo-a imediatamente como uma
coincidência sem qualquer significado mais profundo. Em geral, o
cético cita a lei dos grandes números: quando bilhões de pessoas
passam por dezenas de bilhões de experiências diariamente, é
razoável a probabilidade de que alguns sejam expostos a situações
tão raras e bizarras que, ao menos na superfície, possam parecer
inexplicáveis.
A professora de antropologia da
Universidade de Stanford, na Califórnia, Tanya Luhrmann, que também
contribui regularmente para o New York Times, é o que podemos chamar
de uma especialista na “experiência do sagrado”, o que o grande
psicólogo e filósofo americano William James considera a essência
da religiosidade humana. Luhrmann é autora de diversos livros sobre
o assunto, com títulos como Quando Deus responde ou Alucinações e
sobrecarga sensorial. Em um de seus textos para o New York Times,
Luhrmann reconta um episódio que ocorreu quando era ainda estudante
de pós-graduação na Inglaterra, uma dessas experiências que
ameaçaria sua construção racional da realidade, que sempre supôs
seguir leis físicas de causa e efeito bem definidas.
Numa viagem de trem em direção ao norte
da Inglaterra para entrevistar um grupo de pessoas que praticava uma
forma de mágica que, segundo eles, era bem poderosa, Luhrmann
começou a se sentir estranha: Estava lendo um livro escrito por um
homem que os membros do grupo consideram um “adepto”, alguém com
conhecimento e domínio profundo dos ritos mágicos. Quando tentava
entender como essa pessoa se imagina sendo veículo desses poderes
especiais, comecei a sentir algo estranho pulsando nas minhas veias,
uma espécie de energia que emanava do meu corpo. Senti isso de
verdade, visceralmente, e não apenas na minha imaginação. Comecei
a sentir calor. Estava completamente desperta, mais alerta do que sou
em geral. Tive a sensação de estar intensamente viva. Essa sensação
de energia ocupou meu corpo, viajando através dele como água
fluindo num rio. Tive vontade de cantar. De repente, vi fumaça
saindo da minha mochila, onde havia guardado o farol da minha
bicicleta.
Quando fui examiná-lo, percebi que uma
das lâmpadas havia derretido, mesmo estando apagada. Segundo o
relato de Luhrmann, “apesar de a experiência não ter mudado minha
concepção da realidade, saí do trem com respeito renovado pelas
pessoas que acreditam nesse tipo de mágica. Com frequência, pessoas
têm experiências incríveis, que anotam numa lista de eventos que
não podem explicar, e logo são esquecidos num canto da memória”.
No mesmo artigo, Luhrmann menciona Michael Shermer, autor de vários
livros e editor da Skeptic Magazine (Revista dos Céticos),
racionalista de renome, que também teve suas crenças abaladas por
um desses episódios. Michael é um conhecido meu, e posso atestar
que defende sua racionalidade com unhas e dentes. Eis sua história,
que relata em sua coluna na Scientific American.
Algumas semanas antes de casar com uma
moça alemã, Michael recebeu vários pertences da noiva despachados
pelo correio em caixas. Entre eles, um rádio bem velho, quebrado,
que havia pertencido ao avô dela, falecido há muitos anos. Esse avô
foi muito importante para ela, a figura paterna de maior influência
na sua vida. Apesar de muitas tentativas, Shermer não conseguiu
consertar o rádio. O casal acabou deixando o rádio de lado,
esquecido numa gaveta no quarto. No dia do casamento, que ocorreu na
casa de Shermer, uma música começou a tocar no segundo andar.
Após investigar várias fontes
possíveis, laptops, iPhones etc., Shermer e a noiva descobriram
boquiabertos que a música vinha do rádio, como se tivesse retornado
ao mundo dos vivos. “Meu avô está aqui com a gente”, disse a
moça, aos prantos. “Não estou sozinha!” Michael e sua esposa
deixaram o rádio tocar a noite inteira. No dia seguinte, tão
misteriosamente como havia começado, o rádio parou de funcionar. Eu
também tive uma experiência dessas (mais de uma, na verdade), que
conto em detalhes em meu livro A simples beleza do inesperado, no
capítulo “A Bruxa de Copacabana”. Eis um resumo.
Quando eu tinha 17 anos, crescendo no Rio
de Janeiro, meus pais adoravam receber amigos para jantar. Meu pai
era dentista e tinha acabado de acolher no consultório um grupo
grande de imigrantes portugueses, a maioria deles bem rica (e de
direita), que haviam fugido da Revolução dos Cravos em 1974. Numa
dessas ocasiões, o convidado de honra foi o senhor João Rosas,
ex-ministro da Justiça, entre outros amigos. Meu pai, um anfitrião
impecável, ofereceu uísque ao ex-ministro. Após tomar um gole, o
digno senhor olhou para meu pai com uma expressão perplexa. “Ó
Izaac, isto aqui não é uísque; é chá!” Meu pai pegou o copo do
senhor Rosas, boquiaberto. “Volto num instante”, disse. Foi
correndo até o armário onde guardava as bebidas e confirmou, para
sua surpresa, que todas as garrafas abertas com bebida cor de âmbar
continham chá e não uísque, conhaque, rum etc. Furioso, foi até a
cozinha atrás de Maria, nossa cozinheira, uma senhora negra de 50 e
tantos anos, de porte inabalável.
Lá estava ela, olhos tão escuros que
era fácil se perder dentro deles, debruçando-se sobre uma panela de
feijão com seu turbante branco. A gente sabia que Maria era mãe de
santo, e das boas, daquelas que “recebem” espíritos durante
rituais nos terreiros de macumba. Maria fez pouco caso das acusações
do meu pai, confessando no ato. “Pois bem, dona Maria, amanhã de
manhã, a senhora pode arrumar as malas e ir embora!”, rugiu meu
pai, eu do seu lado. “Eu vou, senhor, mas algo muito ruim vai
acontecer nesta casa!” Uma maldição! Meu pai deu um passo para
trás e pôs a mão no bolso esquerdo, onde levava sempre um dente de
alho, só por via das dúvidas. Olhei para Maria, horrorizado. “Você,
meu filho, não se preocupe não. Você tem corpo fechado e nada te
fará mal.” Meu pai, um homem supersticioso, tomou suas precauções.
Dobrou o número de dentes de alho que
carregava no bolso e encheu a casa com pés de arruda, que ele
julgava ser uma espécie de barômetro clorofílico do mal. Um mês
passou e nada de estranho ocorreu. Contratamos outra cozinheira e a
família retomou a rotina. Até que, um dia, quando estudava
matemática para o vestibular, senti um calafrio e uma compulsão de
ir até a sala de jantar. Lá, tínhamos uma longa mesa de jantar,
flanqueada num dos extremos por um armário onde meus pais guardavam
seus cálices de cristal da Boêmia, antiguidades belíssimas que
haviam ganhado de meus avôs. Eram três prateleiras de cristal, cada
uma contendo em torno de dez ou doze desses cálices preciosos.
Na outra extremidade da mesa, tínhamos
um daqueles carrinhos de bebidas de bronze, com garrafas de cristal
sobre uma prateleira de vidro, cada uma com uma coleira de prata
revelando o conteúdo: licores coloridos, vinho do Porto, Cointreau
etc. Estava em pé ao lado da mesa de jantar meio distraído quando
algo me fez olhar para o armário de bebidas. De repente, a
prateleira superior rachou ao meio, e os copos despencaram sobre a
prateleira abaixo, que, por sua vez, caiu sobre a prateleira
inferior, causando uma avalanche ensurdecedora de cristal se
estilhaçando em mil pedaços.
Em segundos, dezenas de cálices
belíssimos foram destruídos. Mal pisquei os olhos, quando ouvi
outro barulho de vidro quebrando. Olhei na direção oposta da mesa e
a prateleira do carrinho também quebrou, levando com ela todas as
garrafas de cristal. Parecia uma bomba explodindo. Fiquei olhando a
cena, paralisado, não sei por quanto tempo. A cozinheira nova veio
correndo, se benzeu e voltou correndo para a cozinha. Foi embora
naquela noite, dizendo que a casa era mal-assombrada. Tremendo dos
pés à cabeça, liguei para o consultório do meu pai. “É a
maldição, pai. Ela quebrou tudo, bem na minha frente. O armário, o
carrinho, tudo despencou quase ao mesmo tempo!” Durante muito
tempo, tentei explicar o que ocorreu. Um avião supersônico passou
perto; um terremoto; alguma vibração na frequência ressonante do
cristal; talvez estivesse em algum tipo de transe hipnótico e
quebrei tudo. Mas nada fazia sentido. Um evento, tudo bem. Mas os
dois, quase em sincronia perfeita? E envolvendo bebidas alcoólicas,
como deveria ser?
Esta é uma ocorrência na minha vida que
permanecerá inexplicável. As pessoas reagem de modo diverso quando
passam por situações estranhas como essa. Alguns estão convictos
de que é evidência da ação de entidades sobrenaturais, e adotam
alguma religião (o evento pode até provocar uma conversão
religiosa) ou prática mística. Outros, talvez temendo o que esse
tipo de ocorrência representa dentro de sua visão de mundo, decidem
que é apenas uma coincidência rara, de baixa probabilidade, sem
grandes mistérios. Afirmam, sem muita convicção, que esse tipo de
história, por mais bizarra que seja, é algo que ocorre de vez em
quando na vida das pessoas, sem a necessidade de ser atribuída a
alguma dimensão intangível da existência. No meu caso, permaneço
agnóstico. Sendo um cientista, sei bem que a Natureza tende a seguir
regras precisas.
Conhecemos algumas delas, que usamos para
descrever um enorme número de fenômenos naturais, dos átomos às
galáxias. Entretanto, sei também que estamos cercados pelo
desconhecido, por mistérios que permanecem inescrutáveis. O projeto
científico é uma tentativa de elucidar alguns desses mistérios,
algo que a ciência faz com enorme sucesso. Porém, existirá sempre
algo que nos escapa. Muitos veem isso como uma derrota da razão.
Grande equívoco. Um pouco de inexplicável na vida é inevitável. E
muito bem-vindo. Ao examinarmos os muitos níveis da realidade, é
preciso manter a mente aberta, deixando sempre espaço para nos
surpreender com o inesperado. Aprendemos mais a cada dia, mas
aprendemos também a ter humildade perante o tanto que não sabemos
ou podemos saber. Precisamos aprender a celebrar o mistério.
Nem tudo precisa ser explicado, nem toda
pergunta precisa ter resposta. Se tudo fizesse sentido, a vida seria
muito sem graça. Um pouco de inexplicável faz bem, nos deixa um
pouco inseguros, nos convidando a imaginar o que pode existir além
do possível.
Marcelo Gleiser, in O caldeirão azul
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