quarta-feira, 24 de março de 2021

Madame Hortência

Chegamos à praça da aldeia: dois imensos olmos brancos, cercados de troncos grosseiramente talhados para servirem de bancos. Em frente o café, encimado por uma vasta placa desbotada:
Bar e Açougue Pudor”.
De que está rindo, patrão? — perguntou Zorba.
Mas não tive tempo de responder. Da porta do bar saíram cinco ou seis colossos, usando largas calças azul-marinho e faixas vermelhas na cintura.
Sejam bem-vindos, amigos! — gritaram. — deem-nos o prazer de entrar e tomar um raki. Está quente ainda, acabou de sair do tacho.
Zorba estalou a língua.
O que acha, a patrão? Virou-se para mim e piscou o olho.
Tomamos um?
Tomamos um, que nos queimou a garganta. O dono do bar, um velho espigado, bem conservado e lesto, nos trouxe cadeiras.
Perguntei onde poderiam ficar.
Vá para a casa da Madame Hortência — gritou alguém.
Uma francesa? — perguntei surpreendido.
Ela vem do outro lado do mundo. Andou na vida, por aqui e por ali, e quando ficou velha veio dar com os costados aqui, onde abriu um albergue.
Ela também vende bombons! — completou um menino.
Ela bota pó-de-arroz e se pinta! — gritou um outro. — tem uma fita no pescoço, e tem um papagaio também.
Viúva? — perguntou Zorba — ela é viúva?
Ninguém respondeu.
Viúva? — insistiu ele, de água na boca.
O dono do bar afagou com as mãos sua espessa barba grisalha.
Quantos fios tem essa barba, meu amigo? Quantos? Pois bem, esse é o número de maridos dos quais ela é viúva. Entendeu?
Entendi — respondeu Zorba, lambendo os beiços.
E ela ainda pode fazer-lhe viúvo.
Cuide-se, amigo! — gritou um velho, e todos puseram-se a gargalhar.
O dono do bar reapareceu, trazendo numa bandeja o que nos oferecia: pão, queijo de cabra, pêras.
Vamos, deixem-no tranquilo! — disse. — a Madame não serve. Eles ficaram em minha casa.
Eles vão é comigo, Kondomanolio! — disse o velho. — não tenho filhos, minha casa é grande e tem lugar.
Perdão, tio Anagnosti — gritou o dono do bar, debruçando-se sobre a cabeça do velho. — eu falei primeiro.
Você fica com o outro — disse o velho Anagnosti. — eu levo o velho.
Que velho? — perguntou Zorba, já zangado.
Nós preferimos ficar juntos — disse eu fazendo um sinal a Zorba para que não se zangasse. — nós vamos para a casa da Madame Hortência...
Sejam bem-vindos, sejam bem-vindos!
Uma mulher baixota, gorducha, saltitante, os cabelos desbotados, já cor de palha, apareceu sob as árvores, rebolando-se sobre as pernas tortas, de braços estendidos. Um sinal de beleza, eriçado de pêlos duros, ornava-lhe o queixo. Usava uma fita de veludo vermelha em volta do pescoço, e suas faces sem brilho estavam coberta por um pó-de-arroz cor de violeta. Um cacho de cabelo solto balançava-se sobre sua testa, e fazia lembrar Sara Bernhardt, já velha, representando L’Aiglon.
Encantado em conhecê-la, Madame Hortência! — respondi-lhe preparando-me para beijar a mão, levado por um súbito bom humor.
A vida de repente começou a parecer-me um conto, uma comédia de Shakespeare; por exemplo. A Tempestade. Tínhamos acabado de chegar, encharcados pelos naufrágio imaginário.
Explorávamos praias desconhecidas, saudando cerimoniosamente os moradores do lugar. Essa Dona Hortência fazia o papel de rainha da ilha, uma espécie de foca loura e luzidia que tivesse encalhado, já meio apodrecida, perfumada e bigoduda, nessa praia. Atrás dela, com suas múltiplas cabeças, Caliban, o povo, olhando-a com altivez e desprezo.
Zorba, príncipe disfarçado, contemplava-a também, olhos bem abertos, como se a uma antiga companheira, velha fragata que combatera em mares distantes, ora vitoriosa, ora derrotada, com o casco furado, mastros quebrados, velas rasgadas — e que, agora, remendando-se com cremes e pós, se havia aposentado nesta costa e esperava. Seguramente esperava por Zorba, o capitão das mil aventuras.
E foi para mim um prazer ver esses dois comediantes se encontrarem, enfim, nesse cenário cretense, apenas colocado sobre o palco e esboçado em largas pinceladas.
Duas camas, Madame Hortência! — disse eu, inclinando-me diante da velha comediante do amor. — duas camas sem piolhos...
Piolhos não, oh, não, piolhos não! — escandalizou-se ela, fazendo-me um olhar provocante.
Tem sim, tem sim! — zombaram as bocas de Caliban.
Não tem não! Não tem não! — insistiu ela, batendo nas pedras com o pé gordinho, calçadas em grossas meias azul-claro. Usava sapatilhas desbeiçadas, enfeitadas com um pequeno laço de seda.
Uh! Uh!, Que o Diabo te leve, prima donna! — gargalhou ainda Caliban.
Mas Madame Hortência, cheia de dignidade, já se havia posto em movimento, e nos indicava o caminho. Cheirava a pó-de-arroz e sabonete barato.
Zorba ia atrás dela, devorando-a com os olhos.
Olha só, patrão — confiou-me. — como ela rebola, a miserável! Parece essas ovelhas que têm o rabo gordo!
Duas ou três gotas caíram, e o céu escureceu. Relâmpagos azuis abalaram a montanha. Meninas embrulhadas em suas pequenas capas brancas de pêlo de cabra traziam apressadamente do pasto à cabra e o bode da família. As mulheres, acocoradas em frente das lareiras, acendiam o fogo da noite.
Zorba mordeu nervosamente o bigode, sem deixar de olhar o traseiro ondulante da Madame.
Hum! — murmurou suspirando. — Nessa raio de vida nunca faltam às surpresas!

Nikos Kazantzakis, in Zorba, O Grego

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