Chegamos à praça da aldeia: dois
imensos olmos brancos, cercados de troncos grosseiramente talhados
para servirem de bancos. Em frente o café, encimado por uma vasta
placa desbotada:
“Bar e Açougue Pudor”.
— De que está rindo, patrão? —
perguntou Zorba.
Mas não tive tempo de responder. Da
porta do bar saíram cinco ou seis colossos, usando largas calças
azul-marinho e faixas vermelhas na cintura.
— Sejam bem-vindos, amigos! —
gritaram. — deem-nos o prazer de entrar e tomar um raki. Está
quente ainda, acabou de sair do tacho.
Zorba estalou a língua.
— O que acha, a patrão? Virou-se para
mim e piscou o olho.
— Tomamos um?
Tomamos um, que nos queimou a garganta. O
dono do bar, um velho espigado, bem conservado e lesto, nos trouxe
cadeiras.
Perguntei onde poderiam ficar.
— Vá para a casa da Madame Hortência
— gritou alguém.
— Uma francesa? — perguntei
surpreendido.
— Ela vem do outro lado do mundo. Andou
na vida, por aqui e por ali, e quando ficou velha veio dar com os
costados aqui, onde abriu um albergue.
— Ela também vende bombons! —
completou um menino.
— Ela bota pó-de-arroz e se pinta! —
gritou um outro. — tem uma fita no pescoço, e tem um papagaio
também.
— Viúva? — perguntou Zorba — ela é
viúva?
Ninguém respondeu.
— Viúva? — insistiu ele, de água na
boca.
O dono do bar afagou com as mãos sua
espessa barba grisalha.
— Quantos fios tem essa barba, meu
amigo? Quantos? Pois bem, esse é o número de maridos dos quais ela
é viúva. Entendeu?
— Entendi — respondeu Zorba, lambendo
os beiços.
— E ela ainda pode fazer-lhe viúvo.
— Cuide-se, amigo! — gritou um velho,
e todos puseram-se a gargalhar.
O dono do bar reapareceu, trazendo numa
bandeja o que nos oferecia: pão, queijo de cabra, pêras.
— Vamos, deixem-no tranquilo! —
disse. — a Madame não serve. Eles ficaram em minha casa.
— Eles vão é comigo, Kondomanolio! —
disse o velho. — não tenho filhos, minha casa é grande e tem
lugar.
— Perdão, tio Anagnosti — gritou o
dono do bar, debruçando-se sobre a cabeça do velho. — eu falei
primeiro.
— Você fica com o outro — disse o
velho Anagnosti. — eu levo o velho.
— Que velho? — perguntou Zorba, já
zangado.
— Nós preferimos ficar juntos —
disse eu fazendo um sinal a Zorba para que não se zangasse. — nós
vamos para a casa da Madame Hortência...
— Sejam bem-vindos, sejam bem-vindos!
Uma mulher baixota, gorducha, saltitante,
os cabelos desbotados, já cor de palha, apareceu sob as árvores,
rebolando-se sobre as pernas tortas, de braços estendidos. Um sinal
de beleza, eriçado de pêlos duros, ornava-lhe o queixo. Usava uma
fita de veludo vermelha em volta do pescoço, e suas faces sem brilho
estavam coberta por um pó-de-arroz cor de violeta. Um cacho de
cabelo solto balançava-se sobre sua testa, e fazia lembrar Sara
Bernhardt, já velha, representando L’Aiglon.
— Encantado em conhecê-la, Madame
Hortência! — respondi-lhe preparando-me para beijar a mão, levado
por um súbito bom humor.
A vida de repente começou a parecer-me
um conto, uma comédia de Shakespeare; por exemplo. A Tempestade.
Tínhamos acabado de chegar, encharcados pelos naufrágio imaginário.
Explorávamos praias desconhecidas,
saudando cerimoniosamente os moradores do lugar. Essa Dona Hortência
fazia o papel de rainha da ilha, uma espécie de foca loura e luzidia
que tivesse encalhado, já meio apodrecida, perfumada e bigoduda,
nessa praia. Atrás dela, com suas múltiplas cabeças, Caliban, o
povo, olhando-a com altivez e desprezo.
Zorba, príncipe disfarçado,
contemplava-a também, olhos bem abertos, como se a uma antiga
companheira, velha fragata que combatera em mares distantes, ora
vitoriosa, ora derrotada, com o casco furado, mastros quebrados,
velas rasgadas — e que, agora, remendando-se com cremes e pós, se
havia aposentado nesta costa e esperava. Seguramente esperava por
Zorba, o capitão das mil aventuras.
E foi para mim um prazer ver esses dois
comediantes se encontrarem, enfim, nesse cenário cretense, apenas
colocado sobre o palco e esboçado em largas pinceladas.
— Duas camas, Madame Hortência! —
disse eu, inclinando-me diante da velha comediante do amor. — duas
camas sem piolhos...
— Piolhos não, oh, não, piolhos não!
— escandalizou-se ela, fazendo-me um olhar provocante.
— Tem sim, tem sim! — zombaram as
bocas de Caliban.
— Não tem não! Não tem não! —
insistiu ela, batendo nas pedras com o pé gordinho, calçadas em
grossas meias azul-claro. Usava sapatilhas desbeiçadas, enfeitadas
com um pequeno laço de seda.
— Uh! Uh!, Que o Diabo te leve, prima
donna! — gargalhou ainda Caliban.
Mas Madame Hortência, cheia de
dignidade, já se havia posto em movimento, e nos indicava o caminho.
Cheirava a pó-de-arroz e sabonete barato.
Zorba ia atrás dela, devorando-a com os
olhos.
— Olha só, patrão — confiou-me. —
como ela rebola, a miserável! Parece essas ovelhas que têm o rabo
gordo!
Duas ou três gotas caíram, e o céu
escureceu. Relâmpagos azuis abalaram a montanha. Meninas embrulhadas
em suas pequenas capas brancas de pêlo de cabra traziam
apressadamente do pasto à cabra e o bode da família. As mulheres,
acocoradas em frente das lareiras, acendiam o fogo da noite.
Zorba mordeu nervosamente o bigode, sem
deixar de olhar o traseiro ondulante da Madame.
— Hum! — murmurou suspirando. —
Nessa raio de vida nunca faltam às surpresas!
Nikos Kazantzakis, in Zorba, O Grego
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