E já que todo mundo está fazendo
cooper, resolvo fazer também. Escolho o calçadão de
Ipanema, um quilômetro para lá e outro para cá – nem mais um
metro.
E lá vou eu, em passo estugado, numa
marcha batida que me faz lembrar o meu tempo de escoteiro.
Devo dizer que antes resolvi munir-me de
traje adequado. Pensei em comprar um macacão, como vejo outros
usarem, mas, ao experimentar na loja uma dessas indumentárias, me
senti meio ridículo, fantasiado de atleta: todo verdolengo, com uma
faixa branca ao longo da perna da calça apertada – e era o mais
discreto de que dispunham. Coragem de andar na praia metido naquilo
eu talvez tivesse, mas como chegar até lá? Quem me visse passando
pelas ruas assim trajado saberia ser essa a minha intenção? Optei
então por uma bermuda comum, camiseta e uma simples conga, depois de
rejeitar o tênis especial para corrida que o empregado da loja
queria por força que eu comprasse:
– Essa conga vai lhe dar bolha no pé,
o senhor vai ver só.
Pois lá vou marchando impávido calçadão
afora, escondido atrás de uns óculos escuros. Penso se não seria o
caso de enterrar na cabeça um boné, mas vejo logo que não será
preciso: as pessoas que cruzam comigo a correr não me conhecem, e
parecem não fazer a menor questão de conhecer. De minha parte, não
creio que vá esbarrar com alguma amiga, diante da qual gostaria de
fazer bonito, em vez de me expor assim aos seus olhos.
Pois eis que vem lá um conhecido, e logo
quem! É o próprio Werneck que se aproxima correndo. Não o Moacir
Werneck de Castro – que o andar deste é outro, na maciota, e
somente aos domingos – mas José Inácio, o colunista esportivo.
Vem em disparada, braços pendentes ao longo do corpo e meio
inclinado para a frente, como mandam as boas regras do jogging:
– Corre, Fernando! – diz ele,
jovialmente.
Obedeço, e disparo a correr. Já
resfolegando como locomotiva, em pouco avisto alguns metros adiante
outro conhecido que vem vindo. Vem sem correr, num ritmo firme de
soldado, como eu fazia até que o José Inácio me pusesse em brios:
– Não vá na conversa dele, Fernando.
Faça como eu: andando.
E vai passando. É o Noronha, outro
colunista. Tinha testemunhado de longe a advertência do seu colega.
O Sérgio Noronha – mas isso aqui só dá comentarista esportivo! É
gente que entende do riscado, e cada qual tem lá o seu método.
Obedecendo ao do Noronha, que me pareceu mais sensato, caio de novo
na marcha, vou seguindo em frente.
Não há dúvida, assim é mais fácil.
Eu sou é marchador.
Só que podia ir um pouco mais devagar.
Deixo o Noronha se afastar e diminuo o
ritmo. Mas acabo me lembrando de um amigo, que também é doutor no
assunto: corre todo dia os seus oito quilômetros às seis e meia da
manhã, não deixa por menos. E na areia, que é muito mais difícil,
segundo dizem. Pois para ele, o que importa é correr. Nem que seja
bem devagar, me diz: não é preciso bater nenhum recorde de
velocidade – só correr, e não andar. Por quê? Não sei.
Saio trotando pelo calçadão.
– Isso, Fernando!
Eis que encontro alguém que concorda
comigo: um cidadão passa por mim no mesmo trote, emparelhado a dois
companheiros. E grita de longe que está lendo um livro meu – só
faltou dizer o que está achando.
Com alguns dias de prática, descubro o
que todos esses entendidos em cooper estão querendo me
ensinar: trata-se de descobrir cada um o ritmo que lhe é próprio e
se entregar de alma leve e corpo descontraído, fazendo o mínimo de
esforço para não forçar a máquina.
Porque a esta altura já sou uma máquina
correndo em câmera lenta pela rua.
O meu ritmo é este.
O diabo é que acabo deixando também a
mente solta, a vagar pelo espaço. E minha imaginação rola com as
ondas na areia de Ipanema, e se perde na distância azul do mar.
Antes de sair de casa, passei a manhã diante da máquina, tentando
iniciar esta crônica. O papel em branco era um desafio à minha
esterilidade mental. Agora as ideias vão afluindo, e se aglutinam,
compondo frases que procuro fixar na memória, para lançá-las no
papel assim que chegar em casa. Descubro que, para um escritor, nada
mais inspirador do que uma corrida matinal. Mais tarde, comunico a
descoberta à minha mulher, queixando-me de que tão logo regresso ao
trabalho, as ideias se vão. Ela começa a rir e sugere que eu corra
com a máquina de escrever pendurada no peito. O que vem comprovar
mais uma vez que nem tudo que mulher diz é para se levar a sério.
O único risco que eu corro, a prosseguir
nesta onda de inspiração que me impele praia afora, é me distrair
e acabar em Jacarepaguá.
Um velho abanando os braços como se
fosse levantar voo. Um magricela todo despingolado, pés tortos de
deixa-que-eu-chuto. Uma mulher gordíssima, imponente como um
transatlântico. Três meninas de tanga invisível, tudo de fora.
Outro velho, inclinado para trás, num passinho cauteloso de
mamãe-me-limpa. Um crioulão de meter medo, com o macacão verde que
eu não quis comprar. Uma mulherzinha se requebrando, bracinhos
virados para fora. Vou seguindo em frente, esquivando-me de cocôs de
cachorro, babás e carrinhos, mocinhas de bicicleta. Um jovem quase
me atropela ao estacionar a motocicleta na calçada. Um careca, corpo
de atleta, passa correndo:
– Solta os braços!
Não creio que seja cronista esportivo,
nem mesmo meu conhecido. Concluo que faz parte da ética do corredor
esse entendimento tácito ou explícito, às vezes um simples olhar
de conivência.
Mas vejam só quem se aproxima!
Calça, camisa e sapatos comuns, nem
correndo nem marchando, no seu passo de urubu malandro, braço dado
com a mulher: o comentarista que o Brasil consagrou! Quando me vê
passar trotando como camelo velho, no embalo meio desengonçado,
pernas bambas, braços sacolejantes, caindo para a frente como quem
acaba de tropeçar e lá vai catando cavaco aos trancos e barrancos,
João Saldanha sacode a cabeça e me cumprimenta com ar desolado de
quem diz: esse não vai muito longe.
Ainda há pouco minha filha me telefonou
para pedir-me um favor do fundo do coração: que eu pare com essa
mania de correr. Três amigos seus (um deles cardiologista) já lhe
disseram que me fizesse parar com isso, depois que me viram correndo.
Não vou parar, mas terei de mudar de
estilo.
Fernando Sabino, in Fernando Sabino na sala de aula
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