A civilização industrial, entidade
abstrata, nem por isso menos poderosa, encomendou à ciência
aplicada a execução de um projeto extremamente concreto: a
fabricação do ser humano sem pais.
A ciência aplicada faz o possível para
aviar a encomenda a médio prazo. Já venceu a primeira etapa, com a
inseminação artificial, que, de um lado, acelera a produtividade
dos rebanhos (resultado econômico) e, de outro, anestesia o
sentimento filial (resultado moral).
O ser humano concebido por esse processo
tanto pode considerar-se filho de dois pais como de nenhum. Em fase
mais evoluída, o chamado bebê de proveta dispensará a incubação
em ventre materno, desenvolvendo-se sob condições artificiais
plenamente satisfatórias. Nenhum vínculo de memória, gratidão,
amor, interesse, costume — direi mesmo: de ressentimento ou ódio —
o ligará a qualquer pessoa responsável por seu aparecimento. O
sêmen, anônimo, obtido por masturbação profissional e recolhido
ao banco especializado, por sua vez cederá lugar ao gerador
sintético, extraído de recursos da natureza vegetal e mineral.
Estará abolida, assim, qualquer participação consciente do homem e
da mulher no preparo e formação de uma unidade humana. Esta será
produzida sob critérios políticos e econômicos tecnicamente
estabelecidos, que excluem a inútil e mesmo perturbadora intromissão
do casal. Pai? Mito do passado.
Aparentemente, tal projeto parece
coincidir com a tendência, acentuada nos últimos anos, de se
contestar a figura tradicional do pai. Eliminando-se a presença
incômoda, ter-se-ia realizado o ideal de inúmeros jovens que se
revoltam contra ela — o pai de família e o pai social, o governo,
a lei — e aspiram à vida isenta de compromissos com valores do
passado.
Julgo ilusória esta interpretação. O
projeto tecnológico de eliminação do pai vai longe demais no
caminho da quebra de padrões. A meu ver, a insubmissão dos filhos
aos pais é fenômeno que envolve novo conceito de relações, e não
ruptura de relações.
O que eles pretendem, se bem analiso o
sentimento difuso e confuso dos moços, é conviver com o pai, sem
obedecer-lhe por obrigação compulsória, fundada em dependência
econômica. É fazer do pai o companheiro, a quem desculpam ser mais
velho que eles (alegada barreira para o entendimento), e que, por ser
mais velho, deve atenuar essa inconveniência procurando assimilar
novo estilo de vida e nova tábua de valores, embora ainda pouco
nítidos, mas em processo iniludível de afirmação.
O peso demográfico dos jovens dá-lhes a
força que torna ponderável essa atitude insólita. Não adianta ao
pai desconhecer um comportamento individual que espelha o movimento
de massas juvenis compactas e crescentes no mundo inteiro, sob as
mais diversas estruturas sociais. Melhor é admitir e pôr em prática
um exercício de revisão intelectual, doloroso talvez para o seu
orgulho de criador, mas fecundo em consequências de amor e
fraternidade.
Uso conscientemente a palavra. A extensão
do sentimento fraternal ao sentimento paternal, fundindo-se com este
e dando-lhe outro colorido, será possivelmente chave de um
entendimento mais positivo que a simples abdicação das exigências
cruéis da mocidade, e incomparavelmente superior à atitude
belicosa.
Parece, afinal de contas, que os moços
têm alguma coisa a ensinar aos mais velhos. Essa coisa, como
defini-la? Eles próprios não têm noção exata do que seja, embora
saibam com clareza o que deve ser excluído do elenco de ensinamentos
herdados dos mais velhos. Em termos imperfeitos diante da sutileza do
fenômeno, eu diria que os moços convidam os pais e, por extensão,
os homens e mulheres de gerações anteriores a olhar com outros
olhos a vida.
O pai é solicitado a olhar outra vez,
com olhos desprevenidos, a paisagem sabida, para identificar nela
pontos de luz e de sombra, diferenças, nuanças, pormenores
insuspeitados ou menosprezados, senão a totalidade do panorama antes
encerrado em moldura barroca ou vitoriana, e agora excedente de
qualquer moldura que não seja a própria capacidade de mirar,
sentir, compreender. Isto lhe poupará, sem dúvida, o risco de ser
eliminado da sociedade futura, com a oficialização do filho de
laboratório, planejado por tecnocratas insensíveis à graça e à
emoção de gerar pelas próprias entranhas o acontecimento da vida.
Carlos Drummond de Andrade, in De notícias e não notícias faz-se a crônica
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