No Facebook, ela disse que considerava
insultuosa a frase “eu te amo”. Ela justificou sua impressão de
forma sensata e até profunda, sem ofensas. Argumentou que, em
primeiro lugar, dizer uma frase como essa de maneira banal, sem
prestar maior atenção no seu conteúdo, é passar levianamente por
cima do peso e do poder da linguagem e que, subliminarmente, existem
nela índices de extremo autoritarismo. Para começar, como se pode
saber quem e o que é o “eu”? Como dizer, assim, de forma
naturalizada, um pronome que contém um mistério epistemológico,
psíquico e filosófico, para não dizer estético? E, além do mais,
como acoplar essa palavra, já em si indevassável, a uma outra, em
tudo preciosa, como “amo”? Afinal, quem sabe o que é o amor? São
séculos e séculos na tentativa de defini-lo, além de todas as
determinações superestruturais a ele ligadas, como questões de
ordem financeira, moral, familiar, sócio-história etc. etc. etc.,
para alguém agora, em pleno século XXI , vir querer dizer, como se
nada tivesse acontecido, “eu amo”, sem pensar nas causas e nas
consequências envolvidas? E, para coroar a irresponsabilidade da
frase, tida como “normal” em todos os ambientes, desde o
supermercado, passando pelas novelas de televisão e chegando a
frequentar até romances da alta cultura, há a palavra mais grave
dessa frase aparentemente inocente: o “te”. Esse é um termo que
de forma alguma pode ser pronunciado impunemente. Se mal se sabe o
que ou quem é o eu, como se saberá quem é o “tu” e, o que é
mais grave, o “te”, um pronome indireto que, ainda por cima,
indica posse?
Ela foi clara e calma. Disse tudo o que
queria e terminou de maneira mais informal, perguntando se as pessoas
percebiam o conteúdo subliminar daquela mensagem.
Não demorou para que, em sua página,
chovessem comentários, curtidas, sorrisos, carinhas de choro,
carinhas espantadas e coraçõezinhos. Os primeiros comentários
concordavam efusivamente. Mas é claro. Como não pensamos nisso
antes? Não se pode aceitar esse tipo de invasão impunemente. Já
faz muito tempo que pensadores como Barthes, Foucault, Heidegger e
Wittgenstein, só para citar alguns exemplos bem simples, mostraram a
quantidade de subtextos contidos nas formulações mais triviais.
Porém, um pouco mais adiante, começaram
a aparecer discordâncias. Alguns, ainda timidamente, começaram a
relativizar: mas será mesmo? Será que é preciso enxergar o mal em
tudo? Não é enxergar pelo em ovo, fazer tempestade em copo d’água?
Isso parece ter liberado o ânimo dos mais exaltados e vários já
começaram a lembrar de outros posts da mesma pessoa, sempre
criticando tudo, apegando-se a detalhes, deixando de considerar o
lado bom das coisas, e que autoritarismo mesmo é ficar interpretando
demais, expondo as outras pessoas e, quer saber?, ela que fosse para
aquele lugar com essa mania de ponderação teórica sobre frases do
dia a dia.
Ela permaneceu imperturbável, afinal, é
uma estrategista incansável das táticas do Facebook e conhece todos
os seus meandros, emboscadas e jogadas. Quanto mais as pessoas a
criticam, mais ela se sente vitoriosa em sua percepção capciosa da
linguagem e mais os comentadores se digladiam, uns xingando os
outros, agora já sem elegância alguma. O assunto vai mudando e o
que se destaca passa a ser a discussão sobre quem é mais
autoritário e quais as infindáveis formas de manifestação do
poder. Outros não falam nem disso nem daquilo, mas lembram de
frases, fatos e pessoas, dando exemplos que mal remetem a qualquer
coisa parecida.
Até que ela decide postar mais uma vez,
depois de longa espera dos envolvidos. É um arremate, algo para
calar a boca de todos:
“A discussão se perdeu e desviou-se
completamente do escopo inicial. Isso também denota como estão
todos desconsiderando as próprias falas e deixando-se levar pelas
formas mais primárias de autoritarismo inconsciente ou disfarçado.
Portanto, prefiro me calar.”
Uma pessoa só, amiga distante e
admiradora da triunfante frequentadora da rede, postou uma carinha
triste. Alguém ainda ameaçou continuar os xingamentos, mas não
vingou. Ela é a campeã invicta e inconteste do Facebook. É uma
rainha da rede. Com ela não adianta mesmo tentar negociar.
Noemi Jaffe, in Não está mais aqui quem falou
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