segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

No Face

          No Facebook, ela disse que considerava insultuosa a frase “eu te amo”. Ela justificou sua impressão de forma sensata e até profunda, sem ofensas. Argumentou que, em primeiro lugar, dizer uma frase como essa de maneira banal, sem prestar maior atenção no seu conteúdo, é passar levianamente por cima do peso e do poder da linguagem e que, subliminarmente, existem nela índices de extremo autoritarismo. Para começar, como se pode saber quem e o que é o “eu”? Como dizer, assim, de forma naturalizada, um pronome que contém um mistério epistemológico, psíquico e filosófico, para não dizer estético? E, além do mais, como acoplar essa palavra, já em si indevassável, a uma outra, em tudo preciosa, como “amo”? Afinal, quem sabe o que é o amor? São séculos e séculos na tentativa de defini-lo, além de todas as determinações superestruturais a ele ligadas, como questões de ordem financeira, moral, familiar, sócio-história etc. etc. etc., para alguém agora, em pleno século XXI , vir querer dizer, como se nada tivesse acontecido, “eu amo”, sem pensar nas causas e nas consequências envolvidas? E, para coroar a irresponsabilidade da frase, tida como “normal” em todos os ambientes, desde o supermercado, passando pelas novelas de televisão e chegando a frequentar até romances da alta cultura, há a palavra mais grave dessa frase aparentemente inocente: o “te”. Esse é um termo que de forma alguma pode ser pronunciado impunemente. Se mal se sabe o que ou quem é o eu, como se saberá quem é o “tu” e, o que é mais grave, o “te”, um pronome indireto que, ainda por cima, indica posse?
Ela foi clara e calma. Disse tudo o que queria e terminou de maneira mais informal, perguntando se as pessoas percebiam o conteúdo subliminar daquela mensagem.
Não demorou para que, em sua página, chovessem comentários, curtidas, sorrisos, carinhas de choro, carinhas espantadas e coraçõezinhos. Os primeiros comentários concordavam efusivamente. Mas é claro. Como não pensamos nisso antes? Não se pode aceitar esse tipo de invasão impunemente. Já faz muito tempo que pensadores como Barthes, Foucault, Heidegger e Wittgenstein, só para citar alguns exemplos bem simples, mostraram a quantidade de subtextos contidos nas formulações mais triviais.
Porém, um pouco mais adiante, começaram a aparecer discordâncias. Alguns, ainda timidamente, começaram a relativizar: mas será mesmo? Será que é preciso enxergar o mal em tudo? Não é enxergar pelo em ovo, fazer tempestade em copo d’água? Isso parece ter liberado o ânimo dos mais exaltados e vários já começaram a lembrar de outros posts da mesma pessoa, sempre criticando tudo, apegando-se a detalhes, deixando de considerar o lado bom das coisas, e que autoritarismo mesmo é ficar interpretando demais, expondo as outras pessoas e, quer saber?, ela que fosse para aquele lugar com essa mania de ponderação teórica sobre frases do dia a dia.
Ela permaneceu imperturbável, afinal, é uma estrategista incansável das táticas do Facebook e conhece todos os seus meandros, emboscadas e jogadas. Quanto mais as pessoas a criticam, mais ela se sente vitoriosa em sua percepção capciosa da linguagem e mais os comentadores se digladiam, uns xingando os outros, agora já sem elegância alguma. O assunto vai mudando e o que se destaca passa a ser a discussão sobre quem é mais autoritário e quais as infindáveis formas de manifestação do poder. Outros não falam nem disso nem daquilo, mas lembram de frases, fatos e pessoas, dando exemplos que mal remetem a qualquer coisa parecida.
Até que ela decide postar mais uma vez, depois de longa espera dos envolvidos. É um arremate, algo para calar a boca de todos:
A discussão se perdeu e desviou-se completamente do escopo inicial. Isso também denota como estão todos desconsiderando as próprias falas e deixando-se levar pelas formas mais primárias de autoritarismo inconsciente ou disfarçado. Portanto, prefiro me calar.”
Uma pessoa só, amiga distante e admiradora da triunfante frequentadora da rede, postou uma carinha triste. Alguém ainda ameaçou continuar os xingamentos, mas não vingou. Ela é a campeã invicta e inconteste do Facebook. É uma rainha da rede. Com ela não adianta mesmo tentar negociar.

Noemi Jaffe, in Não está mais aqui quem falou

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