sábado, 13 de fevereiro de 2021

Dia de separação

          A alma humana, entranhada na carne, está ainda em estado bruto, imperfeita. Não pode, com suas faculdades insuficientemente desenvolvidas, apresentar um pressentimento claro e seguro. Fosse ela capaz disso, e como teria sido diferente essa separação.
A claridade aumentava cada vez mais. As duas manhãs se confundiam. Via agora mais nitidamente o rosto amado de meu amigo, tendo ficado sob a chuva, imóvel, desolado, ao ar do porto. A porta do café se abriu, o mar bramiu e um marinheiro entrou, baixote — as pernas abertas, com bigodes que pendiam. Vozes soaram, alegres:
Viva, o capitão Lemoni!
Enrosquei-me em meu canto, procurando concentrar-me de novo. Mas o rosto de meu amigo já se havia dissolvido na chuva.
A claridade aumentava, o Capitão Lemoni tirou seu rosário de âmbar e se pôs a manuseá-lo, mal-humorado e taciturno. Eu lutava para não ver, não escutar, e reter ainda um pouco a visão que se dissipava. Reviver ainda a raiva que me invadira então, raiva misturada à vergonha, quando meu amigo me chamou de camundongo comedor de papiros. Desde então, lembro-me bem, nesta expressão encarnou-se todo o meu desprezo pela vida que levara. Eu que tanto amava a vida, como me havia deixado petrificar por tanto tempo numa confusão de livros e papéis enegrecidos!
Nesse dia de separação, meu amigo ajudou-me a ver claro. Senti-me aliviado. Conhecendo agora minha desgraça, poderia talvez vencê-la com mais facilidade. Ela não era mais esparsa e incorpórea; tinha agora um nome, havia tomado corpo e ficou fácil para eu lutar contra ela.
Esse apelido havia certamente convivido comigo, sem barulho, e desde então eu procurava um pretexto para livrar-me das papeladas e atirar-me à ação; repugnava-me ter em meu brasão esse roedor. E eis que há um mês deu-se a oportunidade desejada. Havia alugado, num trecho do litoral cretense, do lado do Mar da Líbia, uma velha mina de linhita abandonada, e iria viver agora entre homens simples, trabalhadores, camponeses, longe da espécie dos “camundongos comedores de papiros”.
Fiz meus preparativos muito emocionado, como se esta viagem tivesse um sentido oculto. Estava decidido a mudar de vida.”Até agora, minha Alma, dizia comigo mesmo, tu não vias senão a sombra e tu te alegravas; agora eu te conduzirei à carne.”
Estava enfim pronto. Na véspera de minha partida, remexendo papéis, encontrei um manuscrito inacabado. Olhei-me, hesitante. Há dois anos que no mais fundo de mim mesmo fremia um grande desejo, como uma semente: Buda. Eu o sentia a cada momento em minhas entranhas, a me devorar e amadurecer. Ele crescia se mexia se debatia em meu peito para sair. Agora não tinha mais coragem de sufocá-lo. Eu não poderia fazê-lo. Já era muito tarde para um tal aborto espiritual.
Subitamente, enquanto segurava, indeciso, o manuscrito, o sorriso de meu amigo desenhou-se no ar, todo ironia e ternura. “Vou levá-lo comigo! Disse eu, irritado. Vou levá-lo comigo e não adianta rir.” Embrulhei-o com cuidado, como uma criança em suas fraldas, e ele veio comigo.

Nikos Kazantzakis, in Zorba, O Grego

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