A
alma humana, entranhada na carne, está ainda em estado bruto,
imperfeita. Não pode, com suas faculdades insuficientemente
desenvolvidas, apresentar um pressentimento claro e seguro. Fosse ela
capaz disso, e como teria sido diferente essa separação.
A
claridade aumentava cada vez mais. As duas manhãs se confundiam. Via
agora mais nitidamente o rosto amado de meu amigo, tendo ficado sob a
chuva, imóvel, desolado, ao ar do porto. A porta do café se abriu,
o mar bramiu e um marinheiro entrou, baixote — as pernas abertas,
com bigodes que pendiam. Vozes soaram, alegres:
—
Viva,
o capitão Lemoni!
Enrosquei-me
em meu canto, procurando concentrar-me de novo. Mas o rosto de meu
amigo já se havia dissolvido na chuva.
A
claridade aumentava, o Capitão Lemoni tirou seu rosário de âmbar e
se pôs a manuseá-lo, mal-humorado e taciturno. Eu lutava para não
ver, não escutar, e reter ainda um pouco a visão que se dissipava.
Reviver ainda a raiva que me invadira então, raiva misturada à
vergonha, quando meu amigo me chamou de camundongo comedor de
papiros. Desde então, lembro-me bem, nesta expressão encarnou-se
todo o meu desprezo pela vida que levara. Eu que tanto amava a vida,
como me havia deixado petrificar por tanto tempo numa confusão de
livros e papéis enegrecidos!
Nesse
dia de separação, meu amigo ajudou-me a ver claro. Senti-me
aliviado. Conhecendo agora minha desgraça, poderia talvez vencê-la
com mais facilidade. Ela não era mais esparsa e incorpórea; tinha
agora um nome, havia tomado corpo e ficou fácil para eu lutar contra
ela.
Esse
apelido havia certamente convivido comigo, sem barulho, e desde então
eu procurava um pretexto para livrar-me das papeladas e atirar-me à
ação; repugnava-me ter em meu brasão esse roedor. E eis que há um
mês deu-se a oportunidade desejada. Havia alugado, num trecho do
litoral cretense, do lado do Mar da Líbia, uma velha mina de linhita
abandonada, e iria viver agora entre homens simples, trabalhadores,
camponeses, longe da espécie dos “camundongos comedores de
papiros”.
Fiz
meus preparativos muito emocionado, como se esta viagem tivesse um
sentido oculto. Estava decidido a mudar de vida.”Até agora, minha
Alma, dizia comigo mesmo, tu não vias senão a sombra e tu te
alegravas; agora eu te conduzirei à carne.”
Estava
enfim pronto. Na véspera de minha partida, remexendo papéis,
encontrei um manuscrito inacabado. Olhei-me, hesitante. Há dois anos
que no mais fundo de mim mesmo fremia um grande desejo, como uma
semente: Buda. Eu o sentia a cada momento em minhas entranhas, a me
devorar e amadurecer. Ele crescia se mexia se debatia em meu peito
para sair. Agora não tinha mais coragem de sufocá-lo. Eu não
poderia fazê-lo. Já era muito tarde para um tal aborto espiritual.
Subitamente,
enquanto segurava, indeciso, o manuscrito, o sorriso de meu amigo
desenhou-se no ar, todo ironia e ternura. “Vou levá-lo comigo!
Disse eu, irritado. Vou levá-lo comigo e não adianta rir.”
Embrulhei-o com cuidado, como uma criança em suas fraldas, e ele
veio comigo.
Nikos Kazantzakis, in Zorba, O Grego
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