Esta é provavelmente uma boa hora para
expor o plano desta obra, oferecer ao gentil leitor uma rápida
visita guiada das instalações e torcer para que você fique até o
fim da exibição. O retrato renovado do Brasil pré-cabralino como
um mosaico de civilizações complexas e populosas será o clímax e
prato principal de nossa jornada, como você já deve ter imaginado,
mas os acontecimentos que lançaram as bases desse florescimento
populacional e cultural são igualmente importantes e misteriosos, e
é por eles que vamos começar.
A aventura principia, obviamente, com o
momento no qual seres humanos puseram pela primeira vez seus pés
neste canto do planeta. Quando foi isso? Há controvérsias (uma
expressão que não será ouvida pela última vez nesta introdução,
posso lhe assegurar). Os arqueólogos que trabalham no majestoso
complexo pré-histórico da Serra da Capivara, no Piauí, costumam
propor, com base na datação indireta de possíveis artefatos de
pedra, que membros da nossa espécie poderiam ter aportado aqui há
cerca de 50 mil anos. Para comparação, trata-se mais ou menos da
mesma época da chegada do Homo sapiens à Austrália, e
também do período imediatamente anterior à invasão da Europa –
então dominada por nossos primos neandertais – pelo ser humano
anatomicamente moderno. Sem nenhuma intenção de desmerecer o
trabalho da equipe que estuda os sítios arqueológicos do Piauí, no
entanto, é preciso ressaltar que a comunidade científica
internacional, via de regra, não aceita essas datas muito antigas
obtidas no Nordeste, em parte porque tem sido impossível replicá-las
(ou seja, identificar artefatos ou restos humanos com idade
equivalente) em outros lugares do continente americano, e mesmo do
Brasil.
Por enquanto, a posição de consenso
entre pesquisadores dentro e fora do país é estimar que a nossa
espécie teria chegado às Américas entre 20 mil e 15 mil anos atrás
(provavelmente mais perto da data mais recente, e não da mais
antiga). Quase todos os indícios disponíveis hoje apontam
fortemente para um avanço que começou no extremo noroeste do
continente americano – saindo da atual Sibéria para chegar ao
moderno Alasca, com uma expansão subsequente, ao longo de alguns
milênios, rumo à América do Sul. Nessa época, conforme a Terra se
aproximava do período final do Pleistoceno (fase da história do
planeta mais conhecida simplesmente como Era do Gelo), havia uma
conexão de terra firme entre a Ásia e a América que deve ter
facilitado a passagem de pessoas e dos animais caçados por elas
entre as duas pontas do oceano Pacífico.
Tudo isso parecia quase indiscutível até
o começo dos anos 1990. O resumo da ópera era que os indígenas
modernos não passavam de siberianos transplantados para cá, de
parentesco relativamente próximo com os atuais moradores do nordeste
da Ásia, que talvez tivessem chegado aqui em algumas ondas
distintas, a julgar pelas diferenças físicas entre, digamos,
construtores de templos de pedra da América Central e Inuit
(popularmente conhecidos como esquimós) do Ártico canadense. No
meio do caminho desse quadro simples e arrumadinho, no entanto, havia
uma pedra de tropeço apelidada de Luzia.
A mais antiga brasileira, que morreu no
interior de Minas Gerais há 12 mil anos, aparentava ter feições —
para ser mais exato, detalhes da anatomia do crânio — que
lembravam as de africanos negros ou de aborígines da Austrália, e
não as de siberianos ou índios modernos. Luzia, porém, não é um
caso isolado. Dezenas de outros esqueletos encontrados nos arredores
de Lagoa Santa, assim como o dela, apresentam características
cranianas parecidas, e análises adicionais também revelaram tais
traços em outros crânios muito antigos (na faixa dos dez mil anos
de idade, pouco mais ou pouco menos) espalhados pelas Américas. Isso
significaria que pelo menos dois povos de origens muito distintas
teriam colonizado nosso continente antes dos europeus, com o povo de
Luzia chegando primeiro e sendo, mais tarde, substituído pelos
indígenas atuais? Essa é a principal pergunta que vamos enfrentar
no próximo capítulo — e posso adiantar que as respostas são cada
vez mais interessantes e complicadas.
Como teremos oportunidade de ver, Luzia e
seus contemporâneos, assim como as populações dos vários milênios
seguintes, eram caçadores-coletores, dependendo exclusivamente da
captura de animais e da coleta de vegetais selvagens para sobreviver.
Os protagonistas misteriosos do capítulo seguinte também parecem
ter adotado essa estratégia de sobrevivência, mas numa escala mais
intensa do que os primeiros habitantes de Lagoa Santa. São eles os
responsáveis pela presença dos sambaquis — estruturas formadas
por um conjunto heterogêneo de rejeitos, com dimensões que vão de
morrinhos modestos a grandes plataformas — ao longo do litoral
brasileiro, em especial nas regiões Sudeste e Sul. Uma das visões
tradicionais sobre a formação dos sambaquis é a de que eles
surgiram basicamente como lixões seculares, ou mesmo milenares, que
acabaram ganhando proporções gigantescas conforme todo tipo de
tralha ia se acumulando. Entretanto, análises mais cuidadosas
indicaram que essas estruturas podem ter funcionado como marcadores
simbólicos intencionais da paisagem do litoral, talvez ressaltando a
identidade dos grupos que as construíram e as rivalidades entre
diversas tribos. De quebra, os sambaquis também eram usados como
cemitérios e como depósitos de alguns dos objetos de arte mais
fascinantes da pré-história nacional.
Urbanoides como nós tendem a não se
emocionar muito quando o tema é a agricultura, mas isso tem mais a
ver com os nossos preconceitos modernos do que com o lado
verdadeiramente épico da revolução agrícola que tomou de assalto
o futuro território brasileiro a partir de uns oito mil anos atrás.
A domesticação de certas espécies vegetais, cujas características
foram lentamente moldadas para otimizar o uso que certos grupos
humanos faziam delas, é a base de todas as civilizações, graças à
possibilidade de produzir mais alimentos numa área menor de solo e,
portanto, prover o sustento de cada vez mais bocas humanas num mesmo
lugar. A consequência disso, com o tempo, tende a ser o surgimento
de populações numerosas, mais sedentárias (ou seja, que em geral
costumam habitar o mesmo lugar por gerações a fio) e propícias às
diferenças sociais e ao aparecimento de grupos mais especializados e
líderes políticos que tentam controlar de forma mais estrita essa
nova abundância de recursos. Em resumo, não há reis, soldados ou
artistas sem plantações para dar-lhes de comer por meio do trabalho
de outras pessoas na terra.
Por décadas, muitos arqueólogos e
antropólogos acharam que esse processo, quando aconteceu entre povos
nativos do atual Brasil, deu-se de maneira meia-boca, se você me
permite o coloquialismo. A maioria dos solos do país, em especial os
da região amazônica, seria pobre demais para garantir uma colheita
robusta sem a mão pesada da tecnologia moderna (e, em muitos casos,
nem mesmo com essa colher de chá), de modo que o processo do
desenvolvimento das civilizações a partir da agricultura teria
ficado truncado. Pouca gente podia ser alimentada daquela maneira, o
que significaria menos potencial para a existência de sociedades
complexas e diversificadas. Segundo essa visão, nenhuma tribo
brasileira teria abandonado completamente a vida seminômade e
relativamente igualitária.
A esta altura do campeonato, você
decerto já imaginou o que eu vou dizer a seguir: o cenário “real”
(pelo menos, até onde podemos concluir sobre o cotidiano real de
milênios atrás, claro) é muito mais complicado do que essa
caricatura. Talvez seja mais correto dizer que o desenvolvimento
agrícola dos nativos brasileiros tinha como característica a
exuberância excessiva, e não a pobreza, ao menos quando o assunto é
a quantidade de espécies domesticadas em maior ou menor grau: cerca
de oitenta vegetais diferentes só para a Amazônia e regiões
vizinhas, calcula um estudo recente, incluindo nessa conta plantas
tão importantes e comuns no mundo de hoje quanto o cacau, o tabaco,
o abacaxi, a mandioca (sem piadas sobre a ex-presidenta Dilma
Rousseff, por gentileza) e diversos tipos de pimenta. Além disso, é
preciso ressaltar a importância de lavouras que não são
autóctones, ou seja, nativas do solo brasileiro, mas que se tornaram
parte importante do pacote tecnológico de diversos grupos indígenas
da nossa parte da América do Sul, como o milho, originalmente
transformado em planta agrícola no longínquo México.
Repare que eu escrevi “domesticadas em
maior ou menor grau” no parágrafo acima. Com efeito, o que se vê
com clareza cada vez maior na história pré-cabralina da
domesticação da natureza brasileira é a importância das chamadas
florestas culturais ou antropogênicas (ou seja, em alguma medida,
geradas pela ação humana). Na prática, isso significa que, às
vezes de forma inconsciente, às vezes com toda a consciência e
propriedade, os habitantes originais do país não só transformaram
certas plantas em lavouras propriamente ditas como também passaram a
modificar a composição de espécies de matas que, aos nossos olhos
não treinados, parecem simplesmente “naturais”. Ledo engano: boa
parte das florestas tropicais brasileiras possui uma proporção de
espécies de plantas úteis para o ser humano — árvores
frutíferas, em especial — muito superior ao que deveríamos
esperar num ecossistema não afetado pela engenhosidade humana.
E, por falar em engenhosidade, poucas
coisas superam a chamada terra preta de índio. Diante da escassez de
solo fértil, a reação dos habitantes originais da Amazônia parece
ter sido simples: fazer o próprio solo fértil, ora. De fato, essa é
a melhor definição para a terra preta amazônica — um solo gerado
pela ação humana, espalhado por uma área relativamente pequena
quando se considera a totalidade do território nacional, mas muito
significativa quando vista sob o prisma de seu potencial para
produzir alimentos, e que, séculos depois de ter sido engendrado,
ainda retém proporções surpreendentemente altas de matéria
orgânica e nutrientes. Ninguém sabe exatamente como a terra preta
foi criada, e o fato é que ainda se discute onde termina o acaso e
onde começa a intencionalidade quando o assunto é a gênese desse
solo, mas já temos algumas pistas importantes que serão devidamente
esmiuçadas.
Os capítulos que virão a seguir serão
uma tentativa de esboçar vida e obra das mais poderosas sociedades
pré-históricas que habitaram o Brasil. Quando colocadas no mapa
moderno do país, elas formam uma espécie de diagrama em cruz, com
uma trave (ou “braço”) que se estende de leste a oeste, da foz
do Amazonas até Manaus, com prolongamentos que chegam ao distante
Acre, e uma haste que se prolonga rumo ao sul, chegando à região
central de Mato Grosso. Os primeiros cronistas europeus (inicialmente
espanhóis) que navegaram pelo Amazonas no século XVI já
mencionavam que um mundaréu de gente habitava essa área, mas os
relatos sobre aldeias imensas e frotas multicoloridas e letais de
canoas acabaram sendo desacreditados, entre outros motivos, porque os
cronistas também mencionavam a existência de exércitos de mulheres
guerreiras suspeitamente semelhantes às amazonas da mitologia
greco-romana (o maior rio do mundo não ganhou seu nome atual por
acaso, como você talvez tenha reparado).
Donzelas-arqueiras matadoras de homens à
parte, tudo indica que os cronistas dos primórdios da conquista
europeia estavam essencialmente certos. Na ilha de Marajó, entre o
grande rio e o oceano Atlântico, líderes tribais parecem ter
coordenado um grande esforço para construir morros artificiais e
sistemas de controle das cheias do Amazonas, tudo para obter o máximo
possível de recursos pesqueiros e fazer frente a seus rivais,
enquanto produziam cerâmica com assombrosa qualidade artística. Os
marajoaras parecem ter sido um caso relativamente raro: uma sociedade
complexa que quase não dependia da agricultura. Mais para o
interior, os habitantes de áreas em torno das atuais Manaus e
Santarém (PA) usaram a terra preta como combustível para a criação
de povoados de grande porte e, assim como ocorria em Marajó, para a
criação de uma arte cerâmica de fazer inveja aos oleiros da Grécia
Antiga e seus vasos decorados com as aventuras dos deuses do Olimpo.
E no Xingu, como já vimos brevemente, a área de transição entre a
Amazônia e o cerrado foi dominada por uma forma peculiar de
urbanismo que talvez nos lembrasse vagamente Brasília (sem o
concreto armado, claro): largas avenidas e praças monumentais, uma
integração sutil e gradual entre áreas habitadas, “parques” e
terrenos florestados.
Uma das questões mais espinhosas, depois
de examinar todos esses vestígios, é saber até que ponto as
culturas indígenas encontradas pelos europeus foram influenciadas
por essas civilizações “perdidas” ou mesmo derivam delas. Em
outros lugares do mundo, sabe-se que o domínio de técnicas
agrícolas e da criação de animais conferiu a certos povos uma
vantagem competitiva e demográfica (ou seja, em quantidade bruta de
gente) que levou a expansões de escala continental. É por isso, por
exemplo, que as línguas e culturas da família indo-europeia,
derivadas de um tronco linguístico-cultural comum, dominaram
praticamente toda a Europa. Há raríssimas exceções a essa regra
hoje, como os bascos, os húngaros e os finlandeses. Há ecos dessas
expansões nos primeiros relatos dos colonizadores sobre o avanço
dos povos Tupi rumo ao litoral no século XVI, por exemplo. A ampla
distribuição de certas famílias linguísticas e culturais, como os
Aruak (exímios navegadores que aparentemente são os principais
responsáveis pela complexidade social e cultural do Xingu), dá
pistas sobre fenômenos parecidos na pré-história. Tudo indica que
misturas complicadas de migrações, guerras, redes de comércio e
diplomacia se juntaram para montar o mapa da diversidade cultural do
país antes da conquista europeia, numa saga que ainda estamos só
começando a entender.
No derradeiro capítulo, a ideia é
cruzar o limiar entre a pré-história e a história propriamente
dita para tentar entender por que o Brasil indígena estava fadado ao
desaparecimento assim que os europeus começaram a aportar por aqui.
Afinal de contas, toda essa conversa de sociedades populosas e
complexas não vira balela diante do fato de que um punhado de
portugueses e espanhóis conseguiu conquistar este colosso de terras?
Se havia tanta gente aqui, como é que foram incapazes de organizar
uma resistência decente? A resposta mais provável para esse
aparente paradoxo é essencialmente biológica: alguns acasos da
pré-história profunda das Américas, inclusive detalhes do que
aconteceu assim que os seres humanos entraram neste continente,
deixaram os indígenas muito vulneráveis diante das armas mais
importantes carregadas pelos invasores, que não eram o aço das
espadas europeias ou a pólvora de seus canhões, mas os
microrganismos trazidos pelos colonizadores. Esse arsenal arrasador,
no entanto, nem sempre foi infalível. Em alguns casos, povos nativos
altamente determinados, criativos e sortudos conseguiram voltar
algumas das armas do Velho Mundo contra os próprios europeus e
arrancar ao menos um empate.
Antes de seguir em frente, creio que é
conveniente ressaltar um ponto que, admito, pode ser óbvio —
embora provavelmente não o seja para muita gente. O mapa do Brasil
que temos hoje, impávido colosso de 8,5 milhões de quilômetros
quadrados, deitado eternamente em berço esplêndido (insira aqui seu
clichê favorito do hino nacional), é uma entidade artificial,
forjada a ferro e fogo pela monarquia portuguesa, com alguns retoques
dados pelo Império e pelos primeiros anos da República. Movimentos
pré-históricos de povos e culturas não costumavam respeitar
fronteiras que só seriam imaginadas milênios mais tarde, o que
significa que, na nossa jornada rumo ao “Brasil” pré-cabralino,
o bom senso sugere que também não deveríamos respeitá-las. Ao
falar do que acontecia nas regiões mais ao sul do atual território
brasileiro, o Uruguai e a Argentina farão, naturalmente, parte da
nossa história; do mesmo modo, na outra extremidade do país
moderno, não vai ser possível abordar as coisas interessantes que
aconteciam com os povos da Amazônia Ocidental (a extremidade oeste
da floresta) sem pensar, ainda que brevemente, no intercâmbio de
ideias, produtos e gente entre eles e os grupos dos Andes, lá para
as bandas do Peru. É meio confuso, eu concordo, mas é mais
coerente.
Reinaldo José Lopes, in 1499: O Brasil antes de Cabral
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