sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

De Luzia às cidadelas do Xingu

          Esta é provavelmente uma boa hora para expor o plano desta obra, oferecer ao gentil leitor uma rápida visita guiada das instalações e torcer para que você fique até o fim da exibição. O retrato renovado do Brasil pré-cabralino como um mosaico de civilizações complexas e populosas será o clímax e prato principal de nossa jornada, como você já deve ter imaginado, mas os acontecimentos que lançaram as bases desse florescimento populacional e cultural são igualmente importantes e misteriosos, e é por eles que vamos começar.
A aventura principia, obviamente, com o momento no qual seres humanos puseram pela primeira vez seus pés neste canto do planeta. Quando foi isso? Há controvérsias (uma expressão que não será ouvida pela última vez nesta introdução, posso lhe assegurar). Os arqueólogos que trabalham no majestoso complexo pré-histórico da Serra da Capivara, no Piauí, costumam propor, com base na datação indireta de possíveis artefatos de pedra, que membros da nossa espécie poderiam ter aportado aqui há cerca de 50 mil anos. Para comparação, trata-se mais ou menos da mesma época da chegada do Homo sapiens à Austrália, e também do período imediatamente anterior à invasão da Europa – então dominada por nossos primos neandertais – pelo ser humano anatomicamente moderno. Sem nenhuma intenção de desmerecer o trabalho da equipe que estuda os sítios arqueológicos do Piauí, no entanto, é preciso ressaltar que a comunidade científica internacional, via de regra, não aceita essas datas muito antigas obtidas no Nordeste, em parte porque tem sido impossível replicá-las (ou seja, identificar artefatos ou restos humanos com idade equivalente) em outros lugares do continente americano, e mesmo do Brasil.
Por enquanto, a posição de consenso entre pesquisadores dentro e fora do país é estimar que a nossa espécie teria chegado às Américas entre 20 mil e 15 mil anos atrás (provavelmente mais perto da data mais recente, e não da mais antiga). Quase todos os indícios disponíveis hoje apontam fortemente para um avanço que começou no extremo noroeste do continente americano – saindo da atual Sibéria para chegar ao moderno Alasca, com uma expansão subsequente, ao longo de alguns milênios, rumo à América do Sul. Nessa época, conforme a Terra se aproximava do período final do Pleistoceno (fase da história do planeta mais conhecida simplesmente como Era do Gelo), havia uma conexão de terra firme entre a Ásia e a América que deve ter facilitado a passagem de pessoas e dos animais caçados por elas entre as duas pontas do oceano Pacífico.
Tudo isso parecia quase indiscutível até o começo dos anos 1990. O resumo da ópera era que os indígenas modernos não passavam de siberianos transplantados para cá, de parentesco relativamente próximo com os atuais moradores do nordeste da Ásia, que talvez tivessem chegado aqui em algumas ondas distintas, a julgar pelas diferenças físicas entre, digamos, construtores de templos de pedra da América Central e Inuit (popularmente conhecidos como esquimós) do Ártico canadense. No meio do caminho desse quadro simples e arrumadinho, no entanto, havia uma pedra de tropeço apelidada de Luzia.
A mais antiga brasileira, que morreu no interior de Minas Gerais há 12 mil anos, aparentava ter feições — para ser mais exato, detalhes da anatomia do crânio — que lembravam as de africanos negros ou de aborígines da Austrália, e não as de siberianos ou índios modernos. Luzia, porém, não é um caso isolado. Dezenas de outros esqueletos encontrados nos arredores de Lagoa Santa, assim como o dela, apresentam características cranianas parecidas, e análises adicionais também revelaram tais traços em outros crânios muito antigos (na faixa dos dez mil anos de idade, pouco mais ou pouco menos) espalhados pelas Américas. Isso significaria que pelo menos dois povos de origens muito distintas teriam colonizado nosso continente antes dos europeus, com o povo de Luzia chegando primeiro e sendo, mais tarde, substituído pelos indígenas atuais? Essa é a principal pergunta que vamos enfrentar no próximo capítulo — e posso adiantar que as respostas são cada vez mais interessantes e complicadas.
Como teremos oportunidade de ver, Luzia e seus contemporâneos, assim como as populações dos vários milênios seguintes, eram caçadores-coletores, dependendo exclusivamente da captura de animais e da coleta de vegetais selvagens para sobreviver. Os protagonistas misteriosos do capítulo seguinte também parecem ter adotado essa estratégia de sobrevivência, mas numa escala mais intensa do que os primeiros habitantes de Lagoa Santa. São eles os responsáveis pela presença dos sambaquis — estruturas formadas por um conjunto heterogêneo de rejeitos, com dimensões que vão de morrinhos modestos a grandes plataformas — ao longo do litoral brasileiro, em especial nas regiões Sudeste e Sul. Uma das visões tradicionais sobre a formação dos sambaquis é a de que eles surgiram basicamente como lixões seculares, ou mesmo milenares, que acabaram ganhando proporções gigantescas conforme todo tipo de tralha ia se acumulando. Entretanto, análises mais cuidadosas indicaram que essas estruturas podem ter funcionado como marcadores simbólicos intencionais da paisagem do litoral, talvez ressaltando a identidade dos grupos que as construíram e as rivalidades entre diversas tribos. De quebra, os sambaquis também eram usados como cemitérios e como depósitos de alguns dos objetos de arte mais fascinantes da pré-história nacional.
Urbanoides como nós tendem a não se emocionar muito quando o tema é a agricultura, mas isso tem mais a ver com os nossos preconceitos modernos do que com o lado verdadeiramente épico da revolução agrícola que tomou de assalto o futuro território brasileiro a partir de uns oito mil anos atrás. A domesticação de certas espécies vegetais, cujas características foram lentamente moldadas para otimizar o uso que certos grupos humanos faziam delas, é a base de todas as civilizações, graças à possibilidade de produzir mais alimentos numa área menor de solo e, portanto, prover o sustento de cada vez mais bocas humanas num mesmo lugar. A consequência disso, com o tempo, tende a ser o surgimento de populações numerosas, mais sedentárias (ou seja, que em geral costumam habitar o mesmo lugar por gerações a fio) e propícias às diferenças sociais e ao aparecimento de grupos mais especializados e líderes políticos que tentam controlar de forma mais estrita essa nova abundância de recursos. Em resumo, não há reis, soldados ou artistas sem plantações para dar-lhes de comer por meio do trabalho de outras pessoas na terra.
Por décadas, muitos arqueólogos e antropólogos acharam que esse processo, quando aconteceu entre povos nativos do atual Brasil, deu-se de maneira meia-boca, se você me permite o coloquialismo. A maioria dos solos do país, em especial os da região amazônica, seria pobre demais para garantir uma colheita robusta sem a mão pesada da tecnologia moderna (e, em muitos casos, nem mesmo com essa colher de chá), de modo que o processo do desenvolvimento das civilizações a partir da agricultura teria ficado truncado. Pouca gente podia ser alimentada daquela maneira, o que significaria menos potencial para a existência de sociedades complexas e diversificadas. Segundo essa visão, nenhuma tribo brasileira teria abandonado completamente a vida seminômade e relativamente igualitária.
A esta altura do campeonato, você decerto já imaginou o que eu vou dizer a seguir: o cenário “real” (pelo menos, até onde podemos concluir sobre o cotidiano real de milênios atrás, claro) é muito mais complicado do que essa caricatura. Talvez seja mais correto dizer que o desenvolvimento agrícola dos nativos brasileiros tinha como característica a exuberância excessiva, e não a pobreza, ao menos quando o assunto é a quantidade de espécies domesticadas em maior ou menor grau: cerca de oitenta vegetais diferentes só para a Amazônia e regiões vizinhas, calcula um estudo recente, incluindo nessa conta plantas tão importantes e comuns no mundo de hoje quanto o cacau, o tabaco, o abacaxi, a mandioca (sem piadas sobre a ex-presidenta Dilma Rousseff, por gentileza) e diversos tipos de pimenta. Além disso, é preciso ressaltar a importância de lavouras que não são autóctones, ou seja, nativas do solo brasileiro, mas que se tornaram parte importante do pacote tecnológico de diversos grupos indígenas da nossa parte da América do Sul, como o milho, originalmente transformado em planta agrícola no longínquo México.
Repare que eu escrevi “domesticadas em maior ou menor grau” no parágrafo acima. Com efeito, o que se vê com clareza cada vez maior na história pré-cabralina da domesticação da natureza brasileira é a importância das chamadas florestas culturais ou antropogênicas (ou seja, em alguma medida, geradas pela ação humana). Na prática, isso significa que, às vezes de forma inconsciente, às vezes com toda a consciência e propriedade, os habitantes originais do país não só transformaram certas plantas em lavouras propriamente ditas como também passaram a modificar a composição de espécies de matas que, aos nossos olhos não treinados, parecem simplesmente “naturais”. Ledo engano: boa parte das florestas tropicais brasileiras possui uma proporção de espécies de plantas úteis para o ser humano — árvores frutíferas, em especial — muito superior ao que deveríamos esperar num ecossistema não afetado pela engenhosidade humana.
E, por falar em engenhosidade, poucas coisas superam a chamada terra preta de índio. Diante da escassez de solo fértil, a reação dos habitantes originais da Amazônia parece ter sido simples: fazer o próprio solo fértil, ora. De fato, essa é a melhor definição para a terra preta amazônica — um solo gerado pela ação humana, espalhado por uma área relativamente pequena quando se considera a totalidade do território nacional, mas muito significativa quando vista sob o prisma de seu potencial para produzir alimentos, e que, séculos depois de ter sido engendrado, ainda retém proporções surpreendentemente altas de matéria orgânica e nutrientes. Ninguém sabe exatamente como a terra preta foi criada, e o fato é que ainda se discute onde termina o acaso e onde começa a intencionalidade quando o assunto é a gênese desse solo, mas já temos algumas pistas importantes que serão devidamente esmiuçadas.
Os capítulos que virão a seguir serão uma tentativa de esboçar vida e obra das mais poderosas sociedades pré-históricas que habitaram o Brasil. Quando colocadas no mapa moderno do país, elas formam uma espécie de diagrama em cruz, com uma trave (ou “braço”) que se estende de leste a oeste, da foz do Amazonas até Manaus, com prolongamentos que chegam ao distante Acre, e uma haste que se prolonga rumo ao sul, chegando à região central de Mato Grosso. Os primeiros cronistas europeus (inicialmente espanhóis) que navegaram pelo Amazonas no século XVI já mencionavam que um mundaréu de gente habitava essa área, mas os relatos sobre aldeias imensas e frotas multicoloridas e letais de canoas acabaram sendo desacreditados, entre outros motivos, porque os cronistas também mencionavam a existência de exércitos de mulheres guerreiras suspeitamente semelhantes às amazonas da mitologia greco-romana (o maior rio do mundo não ganhou seu nome atual por acaso, como você talvez tenha reparado).
Donzelas-arqueiras matadoras de homens à parte, tudo indica que os cronistas dos primórdios da conquista europeia estavam essencialmente certos. Na ilha de Marajó, entre o grande rio e o oceano Atlântico, líderes tribais parecem ter coordenado um grande esforço para construir morros artificiais e sistemas de controle das cheias do Amazonas, tudo para obter o máximo possível de recursos pesqueiros e fazer frente a seus rivais, enquanto produziam cerâmica com assombrosa qualidade artística. Os marajoaras parecem ter sido um caso relativamente raro: uma sociedade complexa que quase não dependia da agricultura. Mais para o interior, os habitantes de áreas em torno das atuais Manaus e Santarém (PA) usaram a terra preta como combustível para a criação de povoados de grande porte e, assim como ocorria em Marajó, para a criação de uma arte cerâmica de fazer inveja aos oleiros da Grécia Antiga e seus vasos decorados com as aventuras dos deuses do Olimpo. E no Xingu, como já vimos brevemente, a área de transição entre a Amazônia e o cerrado foi dominada por uma forma peculiar de urbanismo que talvez nos lembrasse vagamente Brasília (sem o concreto armado, claro): largas avenidas e praças monumentais, uma integração sutil e gradual entre áreas habitadas, “parques” e terrenos florestados.
Uma das questões mais espinhosas, depois de examinar todos esses vestígios, é saber até que ponto as culturas indígenas encontradas pelos europeus foram influenciadas por essas civilizações “perdidas” ou mesmo derivam delas. Em outros lugares do mundo, sabe-se que o domínio de técnicas agrícolas e da criação de animais conferiu a certos povos uma vantagem competitiva e demográfica (ou seja, em quantidade bruta de gente) que levou a expansões de escala continental. É por isso, por exemplo, que as línguas e culturas da família indo-europeia, derivadas de um tronco linguístico-cultural comum, dominaram praticamente toda a Europa. Há raríssimas exceções a essa regra hoje, como os bascos, os húngaros e os finlandeses. Há ecos dessas expansões nos primeiros relatos dos colonizadores sobre o avanço dos povos Tupi rumo ao litoral no século XVI, por exemplo. A ampla distribuição de certas famílias linguísticas e culturais, como os Aruak (exímios navegadores que aparentemente são os principais responsáveis pela complexidade social e cultural do Xingu), dá pistas sobre fenômenos parecidos na pré-história. Tudo indica que misturas complicadas de migrações, guerras, redes de comércio e diplomacia se juntaram para montar o mapa da diversidade cultural do país antes da conquista europeia, numa saga que ainda estamos só começando a entender.
No derradeiro capítulo, a ideia é cruzar o limiar entre a pré-história e a história propriamente dita para tentar entender por que o Brasil indígena estava fadado ao desaparecimento assim que os europeus começaram a aportar por aqui. Afinal de contas, toda essa conversa de sociedades populosas e complexas não vira balela diante do fato de que um punhado de portugueses e espanhóis conseguiu conquistar este colosso de terras? Se havia tanta gente aqui, como é que foram incapazes de organizar uma resistência decente? A resposta mais provável para esse aparente paradoxo é essencialmente biológica: alguns acasos da pré-história profunda das Américas, inclusive detalhes do que aconteceu assim que os seres humanos entraram neste continente, deixaram os indígenas muito vulneráveis diante das armas mais importantes carregadas pelos invasores, que não eram o aço das espadas europeias ou a pólvora de seus canhões, mas os microrganismos trazidos pelos colonizadores. Esse arsenal arrasador, no entanto, nem sempre foi infalível. Em alguns casos, povos nativos altamente determinados, criativos e sortudos conseguiram voltar algumas das armas do Velho Mundo contra os próprios europeus e arrancar ao menos um empate.
Antes de seguir em frente, creio que é conveniente ressaltar um ponto que, admito, pode ser óbvio — embora provavelmente não o seja para muita gente. O mapa do Brasil que temos hoje, impávido colosso de 8,5 milhões de quilômetros quadrados, deitado eternamente em berço esplêndido (insira aqui seu clichê favorito do hino nacional), é uma entidade artificial, forjada a ferro e fogo pela monarquia portuguesa, com alguns retoques dados pelo Império e pelos primeiros anos da República. Movimentos pré-históricos de povos e culturas não costumavam respeitar fronteiras que só seriam imaginadas milênios mais tarde, o que significa que, na nossa jornada rumo ao “Brasil” pré-cabralino, o bom senso sugere que também não deveríamos respeitá-las. Ao falar do que acontecia nas regiões mais ao sul do atual território brasileiro, o Uruguai e a Argentina farão, naturalmente, parte da nossa história; do mesmo modo, na outra extremidade do país moderno, não vai ser possível abordar as coisas interessantes que aconteciam com os povos da Amazônia Ocidental (a extremidade oeste da floresta) sem pensar, ainda que brevemente, no intercâmbio de ideias, produtos e gente entre eles e os grupos dos Andes, lá para as bandas do Peru. É meio confuso, eu concordo, mas é mais coerente.

Reinaldo José Lopes, in 1499: O Brasil antes de Cabral

Nenhum comentário:

Postar um comentário