Decidimos que não seria má ideia tomar
um vermute no bar e é justamente o que fazemos agora, na expectativa
silenciosa da partida. Tirei da mala de mão este caderno e um dos
quatro volumezinhos de capa dura, cor de laranja, do Dom Quixote
que trouxe comigo; não há pressa em desfazer o resto da bagagem.
Temos nove ou dez dias pela frente, antes de desembarcarmos entre os
antípodas; virão mais um sábado e mais um domingo como amanhã, e
ainda uma segunda e uma terça-feira, antes que esta aventura
civilizada chegue ao fim – mais rápido não vai este pachorrento
vapor holandês, cujas tábuas pisamos há pouco. E por que deveria?
O compasso que seu porte mediano e simpático permite é sem dúvida
mais natural e sadio que a trepidante corrida aos recordes daqueles
colossos que liquidam em seis ou mesmo em quatro dias as vastidões
monstruosas à nossa frente. Devagar, devagar. Richard Wagner julgava
que o andamento genuinamente alemão é o andante – mas é
claro que há arbítrio de sobra em respostas parciais como essa à
pergunta eternamente em aberto sobre “o que é genuinamente
alemão?”, e seu saldo é sobretudo negativo, na medida em que
incitam a excluir tudo o que supostamente é “não alemão”, como
por exemplo o allegretto, o scherzando e o spirituoso.
A sentença wagneriana seria mais feliz se deixasse de lado o
elemento nacional, que a sentimentaliza, e se restringisse à
dignidade intrínseca da lentidão, a que também subscrevo. O que é
bom pede tempo. O mesmo vale para o que é grande ou, para dizê-lo
com outras palavras: o espaço pede tempo. Conheço bem a sensação
de que há uma espécie de hybris, alguma coisa de sacrílego
na tentativa de roubar ao espaço uma de suas dimensões, de privá-lo
do tempo naturalmente vinculado a ele. Goethe, que por certo era um
amigo da humanidade mas não da ampliação de suas capacidades
perceptivas, de microscópios e telescópios, talvez consentisse
nesse meu escrúpulo. É claro que se poderia perguntar onde começa
o pecado e por que dez dias não seriam tão graves quanto quatro ou
seis. A virtude residiria em conceder ao oceano outras tantas semanas
e viajar ao sabor dos ventos, que são uma força natural – mas o
vapor também o é. De resto, a calefação é à base de petróleo.
Mas isto já começa a ganhar ares de devaneio.
Fenômeno explicável. É um sinal de
agitação interior. São receios de estreante – o que há de
espantoso nisso? Estou diante de minha primeira viagem pelo
Atlântico, de meu primeiro encontro e convívio com o oceano, e ao
fim e ao cabo, do outro lado da curvatura terrestre, do outro lado
destas águas imensas, está à nossa espera Nova Amsterdam, a
metrópole. Como essa, não há mais que quatro ou cinco, espécie
singular e monstruosa de cidade, desmesurada no estilo e diversa da
classe das cidades grandes, assim como, no âmbito da natureza e da
paisagem, a categoria do primevo e do elementar se destaca
monstruosamente do resto, na forma de desertos, cordilheiras e mares.
Cresci às margens do Báltico, em águas provincianas, e minha
ascendência provém de cidades antigas e medianas, de uma
civilização comedida, cuja constituição nervosa e imaginativa
conhece o temor reverencial diante das forças elementares – bem
como sua rejeição irônica. Certa vez, durante uma tempestade em
alto-mar, Ivan Gontcharóv foi chamado de sua cabine pelo capitão:
afinal, era poeta, tinha que ver tudo aquilo, tão grandioso. O autor
de Oblómov veio ao convés, olhou ao redor e disse: “Ah,
disparates, disparates!” E voltou para baixo.
É tranquilizador pensar que iremos ao
encontro dessas vastidões ermas na companhia e ao abrigo da
civilização, neste belo navio: há pouco, visitamos rapidamente os
deques de passeio, os corredores laqueados, as escadarias atapetadas;
seus oficiais e tripulantes intrépidos não fizeram outra coisa na
vida senão aprender a dominar os elementos. Ele nos conduzirá ao
outro lado como aquele trem de luxo rumo a Cartum, de vagões brancos
e janelas azuis, que leva seus passageiros por paragens terríveis,
entre as colinas tórridas e mortíferas dos desertos da Líbia e da
Arábia… “Fazer-se ao mar” – basta recordar a expressão para
sentir quanto vale o acolhimento no seio da civilização humana. Não
tenho grande estima por quem, à visão da natureza elementar,
entrega-se por inteiro à admiração lírica diante do “grandioso”
e não faz caso de sua hostilidade terrível e indiferente.
De resto, estamos na estação do ano que
ameniza a aventura e impõe certos limites amigáveis a tal
hostilidade. A primavera já vai avançada: a essa altura, não está
prevista nenhuma extravagância fragorosa da parte do oceano, e
esperamos que nossa aptidão para viagens marítimas esteja à altura
de desafios menores, em particular quando, cá comigo, penso nos
comprimidos de Vasano em minha mala de mão – mais um recurso
humanitário. Seria outra história, se fosse inverno! Alguns amigos,
virtuoses das viagens, já me contaram dos terrores risíveis de uma
dessas travessias a que, mais dia, menos dia, também eu me verei
exposto. Ondas? São montanhas! São Gauris Sankares! É proibido
pisar no deque – o irritadiço Gontcharóv não seria chamado, mais
vale ver tudo pela escotilha lacrada. O passageiro prende-se à cama
com correias, levanta-se, cai, é o mesmo movimento complicado de
certos aparelhos de martírio dos parques de diversão, que
embaralham as direções e trocam a cabeça e o estômago de lugar. O
lavatório despenca de alturas vertiginosas sobre a cama, e as malas
dão cambalhotas sobre o chão balouçante da cabine, numa
desajeitada dança de roda. Reina um estrépito pavoroso, infernal,
parte por conta dos elementos que grassam lá fora, parte por conta
do navio que continua lutando por avançar e que estremece até a
última de suas peças. A coisa toda dura três dias e três noites.
Imaginemos que duas já se passaram e só falta a terceira. Até
agora, o passageiro não comeu nada; chega o momento em que
forçosamente recorda esse hábito. Como não morreu – se bem que,
por quartos de hora inteiros, estivesse prontamente disposto a
fazê-lo –, é preciso comer alguma coisa, e ele chama o atendente,
pois a campainha elétrica continua funcionando e o serviço de
primeira classe do navio, disciplinado até o fim, mantém-se em pé
apesar do naufrágio universal – é o comovente, o notável
heroísmo da civilização humana! O sujeito chega, de paletó branco
e guardanapo no braço: não cai, permanece indômito na porta. Em
meio ao clamor infernal, escuta o pedido feito com voz débil, vai e
volta, mantendo com braço ágil o equilíbrio do prato quente,
ameaçado de todos os lados. Tem que esperar o instante certo em que
o estado do mundo permite que deposite o pedido sobre a cama, num
lance calculado, ainda que não garantido. Aproveita-se do momento,
faz o que deve fazer com coragem e inteligência, e tudo parece dar
certo. Nesse mesmo segundo, porém, o mundo muda de feição, de modo
que o prato, emborcado, vai dar na cama da senhora, bem ao lado. Não
há quem possa…
Assim correm as histórias, e como eu
poderia deixar de lembrá-las enquanto bebericamos nosso vermute de
despedida e eu escrevinho estas linhas? Mal seriam necessárias para
reavivar o respeito que sinto diante de nossa empreitada, pois sou um
sujeito respeitoso e, por assim dizer, trago as sobrancelhas sempre
levantadas, como todo homem a quem coube a dádiva divertida, mas
provinciana, de ter fantasia. Ninguém se torna um homem do mundo por
obra dela, pois a fantasia nos “preserva” – se é que cabe o
termo elogioso – de toda superioridade até a velhice. Ter fantasia
não significa ser capaz de inventar uma coisa, e sim de levar as
coisas a sério – e isso não é próprio do homem do mundo.
Estamos aqui, muito implausivelmente, a ponto de repetir a viagem de
Colombo além do Ocidente; por dias e dias vagaremos (em primeira
classe) no vazio cósmico, entre dois continentes – mas não creio
que a maioria de nossos companheiros de viagem esteja pensando alguma
coisa do gênero a respeito. Onde estão, aliás? Estamos sozinhos no
salão forrado de couro, agradavelmente vazio, e agora me ocorre que
éramos praticamente só nós na lancha que nos trouxe até aqui
pelas águas do porto de Boulogne-Maritime. O atendente do bar
aproxima-se e informa, balançando a cabeça, que quatro passageiros
da primeira classe, incluindo nós dois, embarcaram aqui, uma dúzia
já vinha de Roterdam e quatro mais chegarão hoje à noite, em
Southampton. Ninguém mais. O que dizer? Dizemos que, numa viagem
como essa, a companhia de navegação inevitavelmente perderá muito
dinheiro. Uma pena, é a crise, a depressão. Mas na viagem de volta,
concordamos com ele, tudo deverá melhorar. Em junho começa a
temporada europeia para os americanos: Salzburgo, Bayreuth,
Oberammergau acenam à distância, não há erro. É nesses termos
que ele se refere, tacitamente, às gorjetas. Assim-assim, com nítida
reticência, o sujeito preocupado vai se conformando com a situação,
enquanto ponderamos, do nosso ponto de vista, que será muito
agradável viajar num navio tão vazio. Será quase todo nosso,
viveremos como num iate particular. E a ideia de que não serei
perturbado me leva de volta à minha leitura de viagem, ao
volumezinho cor de laranja que, parte de um todo bem maior, está
aqui a meu lado.
Leitura de viagem – um gênero cheio de
conotações de pouco valor. A opinião geral pretende que o que se
lê em viagem deve ser o mais fácil e raso possível, alguma
besteira para se “passar o tempo”. Nunca entendi por quê. Pois,
deixando de lado que a dita literatura de entretenimento é sem
dúvida a coisa mais aborrecida que há na Terra, não consigo
aceitar que, justamente numa ocasião séria e solene como uma
viagem, devamos abdicar de nossos hábitos espirituais e nos entregar
à tolice. O ambiente relaxado e descontraído da viagem criaria
talvez uma disposição dos nervos e do espírito em que a tolice
causasse menos repulsa que de costume? Falava ainda há pouco sobre
respeito. Como tenho estima por nossa empreitada, parece-me certo e
apropriado que também tenha estima pela leitura que há de
acompanhá-la. O Dom Quixote é um livro mundial – o livro
justo para uma viagem pelo mundo. Escrevê-lo foi uma aventura
ousada, e a aventura receptiva que se cumpre ao lê-lo está à
altura das circunstâncias. É estranho, mas jamais levei sua leitura
sistematicamente até o fim. Quero fazê-lo a bordo e chegar à outra
margem deste mar de histórias, assim como, dentro de dez dias,
chegaremos à outra margem do oceano Atlântico.
O cabrestante rangeu enquanto eu
registrava este propósito por escrito. Vamos agora subir ao deque e
ver o que fica para trás e o que vem pela frente.
Thomas Mann, in Travessia marítima com Dom Quixote – Ensaios sobre homens e artistas
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