quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Travessia marítima com Dom Quixote / 19 de maio de 1934

             Decidimos que não seria má ideia tomar um vermute no bar e é justamente o que fazemos agora, na expectativa silenciosa da partida. Tirei da mala de mão este caderno e um dos quatro volumezinhos de capa dura, cor de laranja, do Dom Quixote que trouxe comigo; não há pressa em desfazer o resto da bagagem. Temos nove ou dez dias pela frente, antes de desembarcarmos entre os antípodas; virão mais um sábado e mais um domingo como amanhã, e ainda uma segunda e uma terça-feira, antes que esta aventura civilizada chegue ao fim – mais rápido não vai este pachorrento vapor holandês, cujas tábuas pisamos há pouco. E por que deveria? O compasso que seu porte mediano e simpático permite é sem dúvida mais natural e sadio que a trepidante corrida aos recordes daqueles colossos que liquidam em seis ou mesmo em quatro dias as vastidões monstruosas à nossa frente. Devagar, devagar. Richard Wagner julgava que o andamento genuinamente alemão é o andante – mas é claro que há arbítrio de sobra em respostas parciais como essa à pergunta eternamente em aberto sobre “o que é genuinamente alemão?”, e seu saldo é sobretudo negativo, na medida em que incitam a excluir tudo o que supostamente é “não alemão”, como por exemplo o allegretto, o scherzando e o spirituoso. A sentença wagneriana seria mais feliz se deixasse de lado o elemento nacional, que a sentimentaliza, e se restringisse à dignidade intrínseca da lentidão, a que também subscrevo. O que é bom pede tempo. O mesmo vale para o que é grande ou, para dizê-lo com outras palavras: o espaço pede tempo. Conheço bem a sensação de que há uma espécie de hybris, alguma coisa de sacrílego na tentativa de roubar ao espaço uma de suas dimensões, de privá-lo do tempo naturalmente vinculado a ele. Goethe, que por certo era um amigo da humanidade mas não da ampliação de suas capacidades perceptivas, de microscópios e telescópios, talvez consentisse nesse meu escrúpulo. É claro que se poderia perguntar onde começa o pecado e por que dez dias não seriam tão graves quanto quatro ou seis. A virtude residiria em conceder ao oceano outras tantas semanas e viajar ao sabor dos ventos, que são uma força natural – mas o vapor também o é. De resto, a calefação é à base de petróleo. Mas isto já começa a ganhar ares de devaneio.
Fenômeno explicável. É um sinal de agitação interior. São receios de estreante – o que há de espantoso nisso? Estou diante de minha primeira viagem pelo Atlântico, de meu primeiro encontro e convívio com o oceano, e ao fim e ao cabo, do outro lado da curvatura terrestre, do outro lado destas águas imensas, está à nossa espera Nova Amsterdam, a metrópole. Como essa, não há mais que quatro ou cinco, espécie singular e monstruosa de cidade, desmesurada no estilo e diversa da classe das cidades grandes, assim como, no âmbito da natureza e da paisagem, a categoria do primevo e do elementar se destaca monstruosamente do resto, na forma de desertos, cordilheiras e mares. Cresci às margens do Báltico, em águas provincianas, e minha ascendência provém de cidades antigas e medianas, de uma civilização comedida, cuja constituição nervosa e imaginativa conhece o temor reverencial diante das forças elementares – bem como sua rejeição irônica. Certa vez, durante uma tempestade em alto-mar, Ivan Gontcharóv foi chamado de sua cabine pelo capitão: afinal, era poeta, tinha que ver tudo aquilo, tão grandioso. O autor de Oblómov veio ao convés, olhou ao redor e disse: “Ah, disparates, disparates!” E voltou para baixo.
É tranquilizador pensar que iremos ao encontro dessas vastidões ermas na companhia e ao abrigo da civilização, neste belo navio: há pouco, visitamos rapidamente os deques de passeio, os corredores laqueados, as escadarias atapetadas; seus oficiais e tripulantes intrépidos não fizeram outra coisa na vida senão aprender a dominar os elementos. Ele nos conduzirá ao outro lado como aquele trem de luxo rumo a Cartum, de vagões brancos e janelas azuis, que leva seus passageiros por paragens terríveis, entre as colinas tórridas e mortíferas dos desertos da Líbia e da Arábia… “Fazer-se ao mar” – basta recordar a expressão para sentir quanto vale o acolhimento no seio da civilização humana. Não tenho grande estima por quem, à visão da natureza elementar, entrega-se por inteiro à admiração lírica diante do “grandioso” e não faz caso de sua hostilidade terrível e indiferente.
De resto, estamos na estação do ano que ameniza a aventura e impõe certos limites amigáveis a tal hostilidade. A primavera já vai avançada: a essa altura, não está prevista nenhuma extravagância fragorosa da parte do oceano, e esperamos que nossa aptidão para viagens marítimas esteja à altura de desafios menores, em particular quando, cá comigo, penso nos comprimidos de Vasano em minha mala de mão – mais um recurso humanitário. Seria outra história, se fosse inverno! Alguns amigos, virtuoses das viagens, já me contaram dos terrores risíveis de uma dessas travessias a que, mais dia, menos dia, também eu me verei exposto. Ondas? São montanhas! São Gauris Sankares! É proibido pisar no deque – o irritadiço Gontcharóv não seria chamado, mais vale ver tudo pela escotilha lacrada. O passageiro prende-se à cama com correias, levanta-se, cai, é o mesmo movimento complicado de certos aparelhos de martírio dos parques de diversão, que embaralham as direções e trocam a cabeça e o estômago de lugar. O lavatório despenca de alturas vertiginosas sobre a cama, e as malas dão cambalhotas sobre o chão balouçante da cabine, numa desajeitada dança de roda. Reina um estrépito pavoroso, infernal, parte por conta dos elementos que grassam lá fora, parte por conta do navio que continua lutando por avançar e que estremece até a última de suas peças. A coisa toda dura três dias e três noites. Imaginemos que duas já se passaram e só falta a terceira. Até agora, o passageiro não comeu nada; chega o momento em que forçosamente recorda esse hábito. Como não morreu – se bem que, por quartos de hora inteiros, estivesse prontamente disposto a fazê-lo –, é preciso comer alguma coisa, e ele chama o atendente, pois a campainha elétrica continua funcionando e o serviço de primeira classe do navio, disciplinado até o fim, mantém-se em pé apesar do naufrágio universal – é o comovente, o notável heroísmo da civilização humana! O sujeito chega, de paletó branco e guardanapo no braço: não cai, permanece indômito na porta. Em meio ao clamor infernal, escuta o pedido feito com voz débil, vai e volta, mantendo com braço ágil o equilíbrio do prato quente, ameaçado de todos os lados. Tem que esperar o instante certo em que o estado do mundo permite que deposite o pedido sobre a cama, num lance calculado, ainda que não garantido. Aproveita-se do momento, faz o que deve fazer com coragem e inteligência, e tudo parece dar certo. Nesse mesmo segundo, porém, o mundo muda de feição, de modo que o prato, emborcado, vai dar na cama da senhora, bem ao lado. Não há quem possa…
Assim correm as histórias, e como eu poderia deixar de lembrá-las enquanto bebericamos nosso vermute de despedida e eu escrevinho estas linhas? Mal seriam necessárias para reavivar o respeito que sinto diante de nossa empreitada, pois sou um sujeito respeitoso e, por assim dizer, trago as sobrancelhas sempre levantadas, como todo homem a quem coube a dádiva divertida, mas provinciana, de ter fantasia. Ninguém se torna um homem do mundo por obra dela, pois a fantasia nos “preserva” – se é que cabe o termo elogioso – de toda superioridade até a velhice. Ter fantasia não significa ser capaz de inventar uma coisa, e sim de levar as coisas a sério – e isso não é próprio do homem do mundo. Estamos aqui, muito implausivelmente, a ponto de repetir a viagem de Colombo além do Ocidente; por dias e dias vagaremos (em primeira classe) no vazio cósmico, entre dois continentes – mas não creio que a maioria de nossos companheiros de viagem esteja pensando alguma coisa do gênero a respeito. Onde estão, aliás? Estamos sozinhos no salão forrado de couro, agradavelmente vazio, e agora me ocorre que éramos praticamente só nós na lancha que nos trouxe até aqui pelas águas do porto de Boulogne-Maritime. O atendente do bar aproxima-se e informa, balançando a cabeça, que quatro passageiros da primeira classe, incluindo nós dois, embarcaram aqui, uma dúzia já vinha de Roterdam e quatro mais chegarão hoje à noite, em Southampton. Ninguém mais. O que dizer? Dizemos que, numa viagem como essa, a companhia de navegação inevitavelmente perderá muito dinheiro. Uma pena, é a crise, a depressão. Mas na viagem de volta, concordamos com ele, tudo deverá melhorar. Em junho começa a temporada europeia para os americanos: Salzburgo, Bayreuth, Oberammergau acenam à distância, não há erro. É nesses termos que ele se refere, tacitamente, às gorjetas. Assim-assim, com nítida reticência, o sujeito preocupado vai se conformando com a situação, enquanto ponderamos, do nosso ponto de vista, que será muito agradável viajar num navio tão vazio. Será quase todo nosso, viveremos como num iate particular. E a ideia de que não serei perturbado me leva de volta à minha leitura de viagem, ao volumezinho cor de laranja que, parte de um todo bem maior, está aqui a meu lado.
Leitura de viagem – um gênero cheio de conotações de pouco valor. A opinião geral pretende que o que se lê em viagem deve ser o mais fácil e raso possível, alguma besteira para se “passar o tempo”. Nunca entendi por quê. Pois, deixando de lado que a dita literatura de entretenimento é sem dúvida a coisa mais aborrecida que há na Terra, não consigo aceitar que, justamente numa ocasião séria e solene como uma viagem, devamos abdicar de nossos hábitos espirituais e nos entregar à tolice. O ambiente relaxado e descontraído da viagem criaria talvez uma disposição dos nervos e do espírito em que a tolice causasse menos repulsa que de costume? Falava ainda há pouco sobre respeito. Como tenho estima por nossa empreitada, parece-me certo e apropriado que também tenha estima pela leitura que há de acompanhá-la. O Dom Quixote é um livro mundial – o livro justo para uma viagem pelo mundo. Escrevê-lo foi uma aventura ousada, e a aventura receptiva que se cumpre ao lê-lo está à altura das circunstâncias. É estranho, mas jamais levei sua leitura sistematicamente até o fim. Quero fazê-lo a bordo e chegar à outra margem deste mar de histórias, assim como, dentro de dez dias, chegaremos à outra margem do oceano Atlântico.
O cabrestante rangeu enquanto eu registrava este propósito por escrito. Vamos agora subir ao deque e ver o que fica para trás e o que vem pela frente.

Thomas Mann, in Travessia marítima com Dom Quixote – Ensaios sobre homens e artistas 

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