domingo, 11 de outubro de 2020

Agora você (ou José e seus irmãos)

          Quem quer falar primeiro?
Eu. Ontem entrei no elevador, um desses modernos que não têm botão para apertar, os números dos andares ficam em quadradinhos que se iluminam com o toque, eu estiquei a mão, encostando bem de leve o dedo no número do andar para onde eu ia, de leve mesmo, quase um sopro, e tirei o dedo com a maior rapidez possível, só para testar. O número se iluminou, esses troços funcionam mesmo. Ah, que gracinha, alguém disse. Era um elevador grande, cheio de gente, mas não foi difícil identificar o babaca que havia falado. Está falando comigo? perguntei como um ator durão do cinema, para ver se o pilantra sacava o bicho que ia dar. Mas o sujeito, que não era muito esperto, apenas escroto, disse, estou sim, queridinho. Enfiei logo a mão na cara dele, não por ele achar que eu era veado, desculpem, você é o que você acredita que é, meti a mão nos cornos dele porque não gosto que sujeitos como aquele me dirijam a palavra sem minha licença. O filho da puta, desculpem, ia entrar na porrada mesmo se me desse bom-dia. Apenas um velho, entre os sujeitos que estavam no elevador, protestou, o senhor não pode fazer isso. Deixei passar. O berdamerda que entrou na porrada botou o galho dentro e se escondeu atrás dos outros, no fundo do elevador. Ninguém falou nada, e se falassem eu ia dar porrada para todo lado, seria uma boa oportunidade para botar pra quebrar dentro de um elevador, coisa que nunca fiz até hoje. Reconheço que sou um recalcado indo à forra. Eu era magrinho e delicado, todo mundo me sacaneava, até enfiaram uma vez o dedo no meu cu, desculpem, porque eu era bonito e as pessoas não gostam de homem bonito. Mas entrei para uma academia de musculação, tomei aqueles remédios todos, pratiquei artes marciais, virei um touro, fiz uma tatuagem no braço, um demônio com chifres e tudo, esta aqui, ó, em cima do bíceps, os chifres crescem é só eu inchar o músculo, estão vendo? Continuo sendo uma pessoa de gestos delicados, sou incapaz de agredir velhos, crianças, mulheres e aleijados, não provoco ninguém, a gente ganha músculos mas a alma continua a mesma. Hoje mais ninguém me sacaneia, a não ser certos sujeitos burros que não veem o perigo, como aqueles distraídos que no zoológico querem fazer cafuné na cabeça do tigre enjaulado e perdem o braço. Os idiotas que se engraçam comigo não perdem os braços, mas têm que colocar os ditos no gesso e comprar dentes postiços, isso quando dão sorte de eu estar num dia calmo. Ouvimos o José.
Agora fala você, Xuxinha.
Eu gostava de um rapaz que só me procurava para, bem, para sexo. Disse a ele, você só quer me usar, nunca me leva para ir a lugar nenhum, nem ao McDonald’s, e ele respondeu, você tem razão, me perdoe. E nunca mais me procurou, sumiu. Arranjei um namorado que gostava de ir ao teatro, me levava para comer no japonês porque sabia que eu gostava de ir comer no japonês, e no meu aniversário me deu um relógio Cartier, enquanto que o outro nunca me deu sequer uma flor. Mas eu não conseguia esquecer o outro e terminei com esse que me deu o relógio Cartier. Era uma imitação, depois descobri. Todos os dias penso no outro namorado que sumiu. É isso.
Muito bem, Xuxinha. Você quer falar agora, Gerlaine?
Me deixa pro fim, por favor.
Então agora você, Mário.
Eu queria contar uma história como a do José, mas comigo não acontece nada, as pessoas nem tomam conhecimento que eu existo, posso assobiar, sapatear no meio da rua, vestir uma roupa cheia de guizos que ninguém me olha. Eu saio daqui e ninguém que esteve comigo lembra do meu nome, pior, nem me reconhece, hoje, antes de subir encontrei uma pessoa na porta do edifício, não vou dizer quem foi, e disse pra essa pessoa, nós vamos nos encontrar novamente e essa pessoa perguntou, quem é você? e já me viu aqui três vezes.
Uma vez. Esta é a nossa segunda reunião, Mário. E agora você, Renato.
Eu não queria contar uma história igual à de José, mas eu, eu queria ser o José e reagir a todas as provocações que me fazem porque sou gago. Mas não tenho coragem. Sou o maior engolidor de sapos da cidade.
Talvez seja preciso que alguém enfie o dedo no seu cu, desculpem.
José, espere a hora do debate. Renato, é só isso?
Eu queria ser o José para também enfiar a mão na cara dele, como ele diz. Mas não sou, e como ele diz, ponho o galho dentro.
Renato, você notou que não gaguejou uma vez sequer? Isso é um progresso.
É mesmo? Obrigado. É, é, só, só isso.
Gerlaine? Depois? No fim? Está bem. Agora você, Clebson.
Não tenho problemas, só não consigo dormir direito, oito horas como todo mundo. Durmo três horas por noite, mas a minha mulher diz que é mentira, que eu durmo muito mais. Ela sim, dorme oito horas e eu fico com raiva dela porque dorme enquanto fico acordado e depois me chama de mentiroso, e a pior coisa do mundo é você ficar acordado todas as noites com insônia e alguém ficar ressonando ao seu lado. E quando é a mulher da gente, é pior ainda. Quer dizer, nunca dormi com outra mulher, mas acho que se fosse outra mulher eu não me incomodaria tanto.
Dorme com outra mulher para ver.
José, por favor. Espere um pouco, já vamos começar o debate. E por favor, para de ficar escarrando da janela. Mais alguma coisa, Clebson?
Eu não queria ser o José.
Quer ser um pobre-diabo que não dorme, é isso?
José, se você continuar assim, encerro a reunião.
Está bem, está bem.
Agora você, Gerlaine. Depois? Então agora você, Marcinha.
O que eu queria falar na nossa primeira reunião era sobre a minha compulsão por comer chocolate, não falei porque ficou sendo apenas o dia da nossa apresentação e eu disse que o meu nome era Marcinha, mas como está todo mundo abrindo o coração, quer dizer, abrindo um pouco, quero começar dizendo que o meu nome não é Marcinha, esse é um pseudônimo e isso não chega a ser uma falsidade porque eu sempre quis me chamar Marcinha e vocês podem me chamar de Marcinha. Mas eu falava da minha loucura por chocolate. Como chocolate todo dia e engordo todo dia, e a coisa que eu mais gostava era ir à praia, e cada ano o verão é mais forte, mas não tenho coragem, desisto, me sinto humilhada quando vejo meu corpo no espelho, com o maiô inteiro que comprei e que nem mesmo as coroas usam mais.
Quem come chocolate tem que malhar, pra queimar as calorias.
José, é a vez dela falar.
Não vou falar muito mais. Eu não resisto. Tenho sempre barras de chocolate na minha casa, um dia tranquei a despensa e joguei a chave fora, mas algumas horas depois arrombei a porta da despensa e devorei várias barras sem parar, o que acabou desarranjando os meus intestinos. Bem, eu disse que ia falar pouco e vou terminar. Outro dia eu estava em casa, de tarde, vendo televisão, e quando fui pegar um chocolate notei que havia acabado. Saí correndo desesperada para comprar chocolate no supermercado que fica perto da minha casa e quando já estava lá dentro, em frente a uma prateleira cheia de chocolates variados, percebi que não havia levado a bolsa e não tinha um tostão comigo. Me senti tão infeliz que comecei a chorar em frente à prateleira, eu não ia aguentar mais um minuto sem comer um pedaço de chocolate. Então coloquei uma barra pequena no meu seio, o peito grande serviu pelo menos para isso, e saí com a barra escondida e logo que cheguei na rua devorei o chocolate. Mas a minha vontade não passava e eu, e eu, o negócio é abrir o coração, não é?, e eu corri para outro supermercado e fiz a mesma coisa, apanhei duas barras e fugi com elas, e comi as duas na rua e depois fui na padaria e apanhei, agora três barras, escondi no peito e comi logo em seguida na rua. Acho que a minha história é a pior de todas.
Você quer dizer mais alguma coisa?
Depois.
Está bem, Marcinha. Agora você, Salim.
Não posso ver um turista, louro principalmente, esses caras que fazem favela tour, pegam as nossas mulatas, enchem a cara de caipirinha, compram bandejas de asa de borboleta e depois vão embora falando mal do Brasil e nós brasileiros achamos eles o máximo, isso é que me irrita mais, acharmos eles o máximo e ficarmos loucos para visitar os países deles e quando chegamos lá vemos que não é nada disso, é só enfeite, e eles não gostam de estrangeiros, na França, na Inglaterra, não escapa país nenhum. Um dia fui visitar a Alemanha, diziam para mim, você precisa ir à Alemanha e eu fui à Alemanha e chegando lá só vi mulher gorda de nariz vermelho, o pior é que me tratavam mal em todos os lugares, até o cara que vendia salsicha no quiosque da rua, e quando perguntei a um brasileiro que estava comigo, nós éramos dois casais, eu e minha mulher e ele e a mulher dele, perguntei por que os gringos me tratavam diferente dele, que também não era lá muito bem recebido, o meu amigo respondeu que eles pensavam que eu era turco.
Mas você é turco, Salim.
Turco porra nenhuma, sou filho de libaneses.
Calma, pessoal, estamos aqui para aliviar tensões, não vamos criá-las. José, por favor.
Eu não acho ruim ser turco.
Estou pedindo, José.
Não falo mais nada.
Continue, Salim.
Sou brasileiro, e acho que nós brasileiros devemos ter o maior orgulho do que somos e deixar de ser uns bestalhões deslumbrados com bobagens como a Disney, um monte de patetas gastando dinheiro para ver o Pateta. O avião que vem de Miami parece um ônibus que veio do Paraguai, com sacoleiros cheio de bugigangas. O Brasil é o melhor país do mundo. O José em vez de bater em brasileiros devia bater nesses gringos.
Já enchi muito gringo de porrada.
Assim não é possível. Você não pode ficar calado um minuto, José? E eu não pedi para não escarrar mais pela janela?
Eu não olho nacionalidade, nem cor, nem a roupa que o cara está vestindo, já disse, só não bato em velho, criança, mulher e aleijado, esses podem fazer o que bem entenderem, não encosto a mão. São doze andares, vou engolir o catarro? É um catarro preto.
José, você está querendo que eu termine a reunião? Se você interferir mais uma vez, eu termino. Se escarrar mais uma vez da janela, também termino. Tem gente passando na rua, não importa se são doze andares até lá embaixo. Mais alguma coisa, Salim?
Só uma última palavrinha: amor com amor se paga, e desprezo também. Isso é o que devia estar na nossa bandeira, e não ordem e progresso.
Bem, Salim. Agora você, Gerlaine.
Não quero falar.
Gerlaine, fala o que você quiser. Todo mundo falou.
Não quero.
Você precisa falar. Faz parte, entendeu? Não? Não mesmo? Está bem, fica então ouvindo, garanto que não estará perdendo o seu tempo. Meus amigos e amigas, ouvimos palavras interessantes de todos. Falta o nosso debate. José, por favor, controle seu temperamento impulsivo, está bem? E vamos ser compreensivos uns com os outros, vamos ouvir a opinião alheia com atenção e respeito, ainda que discordando. Com licença, o meu celular está tocando. Tive que deixar o celular ligado porque estou esperando um telefonema grave e urgente, conto com a indulgência de todos. Sim, sim, pode falar. Sei, sei, entendi. Como que ele não pode fazer isso? Foi combinado. Ouça, estou no meio de uma reunião, sim, já entendi, o sujeito se recusa, mas então você não paga, diz que vou conversar com ele. Agora não posso, tenho que desligar, falo com ele depois. Pessoal, peço desculpas pela interrupção. Muito bem, como eu dizia, foi uma jornada muito produtiva, na quinta-feira à mesma hora faremos um debate longo. Gerlaine, você vai ter que dizer alguma coisa, promete? Até quinta, pessoal. Onde foi que larguei o celular?

Rubem Fonseca, in Secreções, Excreções e Desatinos

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