Quem quer falar primeiro?
Eu. Ontem entrei no elevador, um desses
modernos que não têm botão para apertar, os números dos andares
ficam em quadradinhos que se iluminam com o toque, eu estiquei a mão,
encostando bem de leve o dedo no número do andar para onde eu ia, de
leve mesmo, quase um sopro, e tirei o dedo com a maior rapidez
possível, só para testar. O número se iluminou, esses troços
funcionam mesmo. Ah, que gracinha, alguém disse. Era um elevador
grande, cheio de gente, mas não foi difícil identificar o babaca
que havia falado. Está falando comigo? perguntei como um ator durão
do cinema, para ver se o pilantra sacava o bicho que ia dar. Mas o
sujeito, que não era muito esperto, apenas escroto, disse, estou
sim, queridinho. Enfiei logo a mão na cara dele, não por ele achar
que eu era veado, desculpem, você é o que você acredita que é,
meti a mão nos cornos dele porque não gosto que sujeitos como
aquele me dirijam a palavra sem minha licença. O filho da puta,
desculpem, ia entrar na porrada mesmo se me desse bom-dia. Apenas um
velho, entre os sujeitos que estavam no elevador, protestou, o senhor
não pode fazer isso. Deixei passar. O berdamerda que entrou na
porrada botou o galho dentro e se escondeu atrás dos outros, no
fundo do elevador. Ninguém falou nada, e se falassem eu ia dar
porrada para todo lado, seria uma boa oportunidade para botar pra
quebrar dentro de um elevador, coisa que nunca fiz até hoje.
Reconheço que sou um recalcado indo à forra. Eu era magrinho e
delicado, todo mundo me sacaneava, até enfiaram uma vez o dedo no
meu cu, desculpem, porque eu era bonito e as pessoas não gostam de
homem bonito. Mas entrei para uma academia de musculação, tomei
aqueles remédios todos, pratiquei artes marciais, virei um touro,
fiz uma tatuagem no braço, um demônio com chifres e tudo, esta
aqui, ó, em cima do bíceps, os chifres crescem é só eu inchar o
músculo, estão vendo? Continuo sendo uma pessoa de gestos
delicados, sou incapaz de agredir velhos, crianças, mulheres e
aleijados, não provoco ninguém, a gente ganha músculos mas a alma
continua a mesma. Hoje mais ninguém me sacaneia, a não ser certos
sujeitos burros que não veem o perigo, como aqueles distraídos que
no zoológico querem fazer cafuné na cabeça do tigre enjaulado e
perdem o braço. Os idiotas que se engraçam comigo não perdem os
braços, mas têm que colocar os ditos no gesso e comprar dentes
postiços, isso quando dão sorte de eu estar num dia calmo. Ouvimos
o José.
Agora fala você, Xuxinha.
Eu gostava de um rapaz que só me
procurava para, bem, para sexo. Disse a ele, você só quer me usar,
nunca me leva para ir a lugar nenhum, nem ao McDonald’s, e ele
respondeu, você tem razão, me perdoe. E nunca mais me procurou,
sumiu. Arranjei um namorado que gostava de ir ao teatro, me levava
para comer no japonês porque sabia que eu gostava de ir comer no
japonês, e no meu aniversário me deu um relógio Cartier, enquanto
que o outro nunca me deu sequer uma flor. Mas eu não conseguia
esquecer o outro e terminei com esse que me deu o relógio Cartier.
Era uma imitação, depois descobri. Todos os dias penso no outro
namorado que sumiu. É isso.
Muito bem, Xuxinha. Você quer falar
agora, Gerlaine?
Me deixa pro fim, por favor.
Então agora você, Mário.
Eu queria contar uma história como a do
José, mas comigo não acontece nada, as pessoas nem tomam
conhecimento que eu existo, posso assobiar, sapatear no meio da rua,
vestir uma roupa cheia de guizos que ninguém me olha. Eu saio daqui
e ninguém que esteve comigo lembra do meu nome, pior, nem me
reconhece, hoje, antes de subir encontrei uma pessoa na porta do
edifício, não vou dizer quem foi, e disse pra essa pessoa, nós
vamos nos encontrar novamente e essa pessoa perguntou, quem é você?
e já me viu aqui três vezes.
Uma vez. Esta é a nossa segunda reunião,
Mário. E agora você, Renato.
Eu não queria contar uma história igual
à de José, mas eu, eu queria ser o José e reagir a todas as
provocações que me fazem porque sou gago. Mas não tenho coragem.
Sou o maior engolidor de sapos da cidade.
Talvez seja preciso que alguém enfie o
dedo no seu cu, desculpem.
José, espere a hora do debate. Renato, é
só isso?
Eu queria ser o José para também enfiar
a mão na cara dele, como ele diz. Mas não sou, e como ele diz,
ponho o galho dentro.
Renato, você notou que não gaguejou uma
vez sequer? Isso é um progresso.
É mesmo? Obrigado. É, é, só, só
isso.
Gerlaine? Depois? No fim? Está bem.
Agora você, Clebson.
Não tenho problemas, só não consigo
dormir direito, oito horas como todo mundo. Durmo três horas por
noite, mas a minha mulher diz que é mentira, que eu durmo muito
mais. Ela sim, dorme oito horas e eu fico com raiva dela porque dorme
enquanto fico acordado e depois me chama de mentiroso, e a pior coisa
do mundo é você ficar acordado todas as noites com insônia e
alguém ficar ressonando ao seu lado. E quando é a mulher da gente,
é pior ainda. Quer dizer, nunca dormi com outra mulher, mas acho que
se fosse outra mulher eu não me incomodaria tanto.
Dorme com outra mulher para ver.
José, por favor. Espere um pouco, já
vamos começar o debate. E por favor, para de ficar escarrando da
janela. Mais alguma coisa, Clebson?
Eu não queria ser o José.
Quer ser um pobre-diabo que não dorme, é
isso?
José, se você continuar assim, encerro
a reunião.
Está bem, está bem.
Agora você, Gerlaine. Depois? Então
agora você, Marcinha.
O que eu queria falar na nossa primeira
reunião era sobre a minha compulsão por comer chocolate, não falei
porque ficou sendo apenas o dia da nossa apresentação e eu disse
que o meu nome era Marcinha, mas como está todo mundo abrindo o
coração, quer dizer, abrindo um pouco, quero começar dizendo que o
meu nome não é Marcinha, esse é um pseudônimo e isso não chega a
ser uma falsidade porque eu sempre quis me chamar Marcinha e vocês
podem me chamar de Marcinha. Mas eu falava da minha loucura por
chocolate. Como chocolate todo dia e engordo todo dia, e a coisa que
eu mais gostava era ir à praia, e cada ano o verão é mais forte,
mas não tenho coragem, desisto, me sinto humilhada quando vejo meu
corpo no espelho, com o maiô inteiro que comprei e que nem mesmo as
coroas usam mais.
Quem come chocolate tem que malhar, pra
queimar as calorias.
José, é a vez dela falar.
Não vou falar muito mais. Eu não
resisto. Tenho sempre barras de chocolate na minha casa, um dia
tranquei a despensa e joguei a chave fora, mas algumas horas depois
arrombei a porta da despensa e devorei várias barras sem parar, o
que acabou desarranjando os meus intestinos. Bem, eu disse que ia
falar pouco e vou terminar. Outro dia eu estava em casa, de tarde,
vendo televisão, e quando fui pegar um chocolate notei que havia
acabado. Saí correndo desesperada para comprar chocolate no
supermercado que fica perto da minha casa e quando já estava lá
dentro, em frente a uma prateleira cheia de chocolates variados,
percebi que não havia levado a bolsa e não tinha um tostão comigo.
Me senti tão infeliz que comecei a chorar em frente à prateleira,
eu não ia aguentar mais um minuto sem comer um pedaço de chocolate.
Então coloquei uma barra pequena no meu seio, o peito grande serviu
pelo menos para isso, e saí com a barra escondida e logo que cheguei
na rua devorei o chocolate. Mas a minha vontade não passava e eu, e
eu, o negócio é abrir o coração, não é?, e eu corri para outro
supermercado e fiz a mesma coisa, apanhei duas barras e fugi com
elas, e comi as duas na rua e depois fui na padaria e apanhei, agora
três barras, escondi no peito e comi logo em seguida na rua. Acho
que a minha história é a pior de todas.
Você quer dizer mais alguma coisa?
Depois.
Está bem, Marcinha. Agora você, Salim.
Não posso ver um turista, louro
principalmente, esses caras que fazem favela tour, pegam as nossas
mulatas, enchem a cara de caipirinha, compram bandejas de asa de
borboleta e depois vão embora falando mal do Brasil e nós
brasileiros achamos eles o máximo, isso é que me irrita mais,
acharmos eles o máximo e ficarmos loucos para visitar os países
deles e quando chegamos lá vemos que não é nada disso, é só
enfeite, e eles não gostam de estrangeiros, na França, na
Inglaterra, não escapa país nenhum. Um dia fui visitar a Alemanha,
diziam para mim, você precisa ir à Alemanha e eu fui à Alemanha e
chegando lá só vi mulher gorda de nariz vermelho, o pior é que me
tratavam mal em todos os lugares, até o cara que vendia salsicha no
quiosque da rua, e quando perguntei a um brasileiro que estava
comigo, nós éramos dois casais, eu e minha mulher e ele e a mulher
dele, perguntei por que os gringos me tratavam diferente dele, que
também não era lá muito bem recebido, o meu amigo respondeu que
eles pensavam que eu era turco.
Mas você é turco, Salim.
Turco porra nenhuma, sou filho de
libaneses.
Calma, pessoal, estamos aqui para aliviar
tensões, não vamos criá-las. José, por favor.
Eu não acho ruim ser turco.
Estou pedindo, José.
Não falo mais nada.
Continue, Salim.
Sou brasileiro, e acho que nós
brasileiros devemos ter o maior orgulho do que somos e deixar de ser
uns bestalhões deslumbrados com bobagens como a Disney, um monte de
patetas gastando dinheiro para ver o Pateta. O avião que vem de
Miami parece um ônibus que veio do Paraguai, com sacoleiros cheio de
bugigangas. O Brasil é o melhor país do mundo. O José em vez de
bater em brasileiros devia bater nesses gringos.
Já enchi muito gringo de porrada.
Assim não é possível. Você não pode
ficar calado um minuto, José? E eu não pedi para não escarrar mais
pela janela?
Eu não olho nacionalidade, nem cor, nem
a roupa que o cara está vestindo, já disse, só não bato em velho,
criança, mulher e aleijado, esses podem fazer o que bem entenderem,
não encosto a mão. São doze andares, vou engolir o catarro? É um
catarro preto.
José, você está querendo que eu
termine a reunião? Se você interferir mais uma vez, eu termino. Se
escarrar mais uma vez da janela, também termino. Tem gente passando
na rua, não importa se são doze andares até lá embaixo. Mais
alguma coisa, Salim?
Só uma última palavrinha: amor com amor
se paga, e desprezo também. Isso é o que devia estar na nossa
bandeira, e não ordem e progresso.
Bem, Salim. Agora você, Gerlaine.
Não quero falar.
Gerlaine, fala o que você quiser. Todo
mundo falou.
Não quero.
Você precisa falar. Faz parte, entendeu?
Não? Não mesmo? Está bem, fica então ouvindo, garanto que não
estará perdendo o seu tempo. Meus amigos e amigas, ouvimos palavras
interessantes de todos. Falta o nosso debate. José, por favor,
controle seu temperamento impulsivo, está bem? E vamos ser
compreensivos uns com os outros, vamos ouvir a opinião alheia com
atenção e respeito, ainda que discordando. Com licença, o meu
celular está tocando. Tive que deixar o celular ligado porque estou
esperando um telefonema grave e urgente, conto com a indulgência de
todos. Sim, sim, pode falar. Sei, sei, entendi. Como que ele não
pode fazer isso? Foi combinado. Ouça, estou no meio de uma reunião,
sim, já entendi, o sujeito se recusa, mas então você não paga,
diz que vou conversar com ele. Agora não posso, tenho que desligar,
falo com ele depois. Pessoal, peço desculpas pela interrupção.
Muito bem, como eu dizia, foi uma jornada muito produtiva, na
quinta-feira à mesma hora faremos um debate longo. Gerlaine, você
vai ter que dizer alguma coisa, promete? Até quinta, pessoal. Onde
foi que larguei o celular?
Rubem Fonseca, in Secreções, Excreções e Desatinos
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