segunda-feira, 20 de julho de 2020

Uma branca sombra pálida (trecho inicial)

Hoje fui ao túmulo de Gina e de longe já vi as rosas vermelhas espetadas na jarra do lado esquerdo, Oriana veio ontem. Não combinamos nada, é evidente, mas a jarra do lado esquerdo ficou sendo a dela, a jarra da direita é das minhas rosas brancas. Que já murcharam, as brancas duram menos. Acendi um cigarro. É proibido fumar, eu vi escrito por aí. E o que mais é proibido, viver? Fiquei um tempo olhando suas rosas vermelhonas, completamente desabrochadas. Um pouco mais de sol nessas corolas e em meio do perfume virá aquele cheiro que vem dos mortos quando também eles começam a amadurecer. Não nas narinas! eu disse. Fui buscar o corpo depois da autópsia, já não era mais a pequena Gina, agora era o corpo com aquele algodão atochado no nariz, Tira isso! O enfermeiro obedeceu, apático, tudo na sala era assim neutro mas limpo. Sua filha? ele perguntou. Fiz que sim com a cabeça e então me recomendou, Caso precise, a senhora depois arruma outro algodão. Não precisou, até o fim Gina ficou com suas narinas livres para voltar a respirar se quisesse. Não quis. Está certo, foi feita a sua vontade, ela era voluntariosa, quando resolvia uma coisa, hein?
Apanhei no chão o papel cinza-prateado da floricultura, logo aqui adiante há um cesto metálico e no cesto está escrito Lixo, este é um cemitério ordeiro. A desordeira é Oriana, com seus dedinhos curtos, parece que estou vendo os dedinhos de unhas roídas amarfanhando raivosamente o papel que virou esta bola dura, não se conforma com a morte. Ah, que coincidência, porque também eu não me conformo, a diferença apenas é que você gosta de fazer sujeira, Você é suja! Um casal que vinha pela alameda ouviu e parou assustado. Jogo longe o cigarro, faço cara compungida e finjo que rezo enquanto me inclino diante da jarra das rosas vermelhas. Choveu, elas ficaram encharcadas. Depois veio o sol e as vermelhonas se fartaram de calor, obscenas de tão abertas. Ao anoitecer vão parecer viçosas mas amanhã certamente já estarão escuras, com aquele vermelho-negro bordejando as pétalas. Sujas, repito bem baixinho porque o casal de velhos ainda continua por perto, comentando a beleza do ipê-amarelo que floriu numa sepultura de cal recente. A terra aqui é rica, tenho vontade de informar ao casal de idiotas, vergados de velhice e ainda alegrinhos, oh! as flores, os passarinhos. Vou com a minha jarra até a torneira mas antes deixo no cesto o ramo murcho das minhas rosas brancas e mais o papel que Oriana largou no chão. Desembrulho os botões que acabei de trazer, os caules duros, as corolas arrogantes de tão firmes – não é mesmo curioso? Gina tinha essa mesma postura altiva de bailarina se preparando para entrar no palco, a cabeça pequena, a testa pura. Artificial, sim, dissimulada mas querendo parecer natural, as bailarinas são dissimuladas como os próprios seios aplacados sob o corpete. Os gatos dissimulam feito as bailarinas, andou por casa uma gatinha de telhado que Gina encontrou na esquina, apaixonou-se pela gatinha, Filomena! Filô, Filô! E a gatinha vinha correndo e berrando com aquele rabo aceso, uma antena. Diante do pires de leite, a dissimulação: olhava para um lado, para o outro, desinteressada. Fingindo não estar com o menor apetite. Quando ficou no cio, desapareceu. E Gina aos prantos, chamando em vão, todos os dias deixava no jardim o leite, a carne. Estava no cio, queria um gato, eu avisei e Gina baixou aqueles olhos de um azul inocente. Não, mãezinha, ela ia ser freira. Cheguei a rir, uma gata freira? Mas Gina não estava fazendo graça, estava séria enquanto guardava na sacola as suas sapatilhas, resolvera entrar para uma escola de bailado clássico. Foi por essa época que conheceu Oriana, a dos dedinhos. Começou então a se interessar por letras. Letras, Gina? É, letras. Era o que a outra estudava. Você é que sabe, respondi. Sempre concordei com tudo e adiantava discordar?
Deixo a minha jarra com os seus botões empertigados ao lado das rosas de Oriana e penso agora que essas jarras ficaram grandes demais para um túmulo tão pequeno, Gina era pequena. A pequena Gina, digo e me sento na beirada da lousa, os cemitérios deviam ter cadeiras. Mas assim isto aqui não virava logo uma festa? Com a chegada da noite, a pequena Gina de sapatilhas rosadas a deslizar dançarinando por entre os túmulos e aquele lá do retrato, o cabelo encaracolado e a gravata preta de laçarote, um pianista a tocar o seu Prelúdio e o político, aquele da escultura pomposa com os braços abertos na promessa interrompida, ansioso por continuar o seu discurso – mas não seria mais lógico cada qual cumprindo até o infinito o ofício da paixão? Este enorme espaço perdido, todo mundo amontoado lá fora e aqui a imensidão desabitada. Respeito pelas almas? Mas onde estão essas almas? Amasso devagar o papel de seda que embrulhava o meu ramo até o papel virar a bola que guardo no bolso. E também eu, lúcida mas participando da farsa. Está certo, já entendi, preciso representar. Mas representar para quem se a única vida que resta está nessas árvores. Nesta grama que rompe com fúria nos canteiros mas perde para a pedra, é o triunfo do mau gosto na pedra das estátuas. Das capelas. Mas os cemitérios têm mesmo que ser românticos, disse Gina. Voltávamos do enterro do pai e agora me lembro que fiz uma observação que a desgostou, era qualquer coisa em torno desse ritual das belas frases, das belas imagens sem a beleza. Ela com a sua mágoa e eu com a minha impaciência, ah, a mentira das superfícies arrumadas escondendo lá no fundo a desordem, o avesso desta ordem.
Lygia Fagundes Telles, in A noite escura e mais eu

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