domingo, 7 de junho de 2020

Monsenhores

na verdade, eu já estava pondo o jantar na mesa quando bateram na porta, eu mesma fui atender, um rapazote que eu mal conhecia me disse que o Luca mandava me chamar, pr’eu ir “sem demora, dona Ermínia, o seu Luca diz que é grave”, nem tive tempo de perguntar, naquele susto nem sei que que poderia ter perguntado pro rapazote, que escapuliu dali sem eu dar por isso, fiquei um instantezinho parada, pensando, pensando coisas atropeladas, e já ia desfazendo o cinto do avental enquanto ouvia a estridência das minhas crianças na mesa, batendo na sua impaciência com os garfos nos pratos, só sei que, sem mais pensar, joguei o avental numa das cadeiras lá da sala, deixei todo mundo na copa me esperando, saí quase correndo com toda essa minha corpulência, e logo estava no meio da rua, achando que a qualquer momento eu ia ploft, sem ninguém pra me acudir, mas mesmo naquele meu desabalo eu conseguia ouvir, vindo das casas, a barulheira das famílias na mesa, e podia até dar conta dos risos, a vida na hora do jantar em cada lar como lá em casa, e estava achando até engraçado como eu, tão preocupada, uns pensamentos esquisitos na cabeça, ainda podia pensar com um fio de atenção no que se passava e, quando cheguei na casa lá do Luca, me assustei com o rangido do portão de ferro, parecia até que alguma coisa de sinistro já tinha acontecido e, enquanto afundava pelo corredor lateral, notei que janelas e porta estavam fechadas, como numa casa abandonada, fiquei um pouco depois parada, uma tremedeira nas pernas, sem força nem pra subir aquele tico de degrau à minha frente e, quando a porta se abriu sem que eu tivesse batido, foi um choque, não porque o Luca aparecesse assim de repente no vão, mas porque era a primeira vez que o via daquele jeito, a cara sem a vitalidade de costume, parecia até que ele estava se mostrando pelo avesso, e o que me intrigou foi dar pela sala um tanto em penumbra, e quando o Luca disse “entre, Ermi” com a voz mais sumida que eu jamais pudesse conceber aquele homem vigoroso e enérgico fosse capaz, só sei que meu coração saltou pela boca, tinha os olhos formigando e, tomada pela imagem de um menino triste e solitário, tudo que queria perguntar era “e o Dinho, meu afilhado?”, mas nem consegui e, quando o Luca se afastou um passo pra me dar passagem, foi então que entrei na casa, cheia de uns pressentimentos, e ao levar a mão no botão da luz, senti a mão do Luca se fechar firme no meu pulso e, quando disse “não acenda”, fiquei mais perturbada ainda por não ter compreendido por quê, e só perguntei “e o Dinho?” “e a Lucila?”, e ele, sem responder, retirou a mão que me apertava, continuamos calados, ainda que já pudesse ver melhor as coisas, corri os olhos na barba crescida, no desleixo da roupa, e não estava segura de ele ter murmurado qualquer coisa ao encará-lo, mas me pareceu que tivesse dito “foi o pó da viagem”, que achei estranho se fosse mesmo isso, ele que não era de viajar a parte alguma, e como nem era mais o caso de fazer perguntas, só sei que, numa passada de olhos, enxerguei melhor as coisas ali na sala, o vaso de flores em cima da cristaleira, e foi aí que atinei pros monsenhores que, há menos de vinte dias, a Lucila tinha trazido lá de casa, e essa foi a última vez que a gente tinha se visto, até estava fritando nem me lembro o que pro jantar, quando senti uma sombra na cozinha, era a Lucila encostada na parede, quieta, quieta, tive até a impressão que fazia tempo que ela estava ali, amarrotei as mãos no avental e disse “Lucila!”, mas ela nem me olhava, o rosto de fazer pena, e sem mais deixou a cozinha, foi o tempo de apagar o fogo pra ir atrás dela que já estava atravessando a sala, saindo num andar indiferente a tudo, e eu, sem descer a escadinha do terraço pro jardim, fiquei observando a Lucila, alheada de mim, colhendo sem pressa, haste por haste, os monsenhores, voltei a chamá-la, mas ela nem sequer ergueu os olhos, até que, daquele jeito desligada, saiu pra rua com a braçada de flores, e eu, só pensando naquela esquisitice, continuei no terraço vendo com amargura ela se afastar, e deviam ser os mesmos monsenhores que estavam ali no vaso em cima da cristaleira, chamuscados pela chama de um pavio ao lado, desses que são mergulhados num copinho com óleo, tanto que as flores se encontravam murchas, talvez podres, exalando mau cheiro, e nada fazia supor comida na casa, menos ainda sinal de mesa posta e, notando tudo isso, parecia que eu estava começando a pôr um pouco de ordem nas coisas, e isso me deu alguma segurança, que é só um jeito de dizer, o que acontecia de verdade é que estava me apertando tudo aqui dentro, ainda mais que achei de pensar nessa minha falta imperdoável, eu que tinha me proposto desde aquele dia dos monsenhores de vir à casa da Lucila, mas também é tudo tão corrido, é uma loucura, nem naquele dia, nem no seguinte, nem em outro, incrível como a gente nunca se pega com tempo, minhas crianças me deixam maluca, por cima tinha ainda a cocozeira do Zitinho, o meu mais novo, o dia inteiro com diarreia, imagine se o Miro não me faz largar a escolinha rural logo depois do nascimento do Tito, que é o meu segundo, imagine só… imagine o que não seria agora, se possível alguma ordem, o dia inteiro as estripulias das crianças, uma penca de demônios, a paciência do Miro é que me consola, vive dizendo com ar sério “Mi, existe uma peneira que a gente nem pode imaginar o tamanho, e quem trabalha com ela está muitas vezes jogando a gente pro alto, mas tem horas em que tudo entra na sua normalidade”, e eu até já disse que ele nem precisa mais falar isso, que já não duvido nem um pingo que essa peneira existe, mas toda noite que ele esquece um pouco os amigos e resolve ficar em casa, depois da bagunça das crianças no jantar, depois que deixei a cozinha arrumadinha, assim limpinha e quietinha no escuro, e depois também de ter levado meus capetas pra cama, esses diabinhos que são toda a minha vida, e depois que tudo já está dormindo na casa, tudo certinho no seu lugar, aí então o Miro e eu vamos pro terraço, a gente senta ali de luz apagada, uns barulhinhos de insetos entre as folhagens, tudo tão romântico, é aí que o Miro diz o que diz sempre nessas noites que fica em casa “você vê, Mi, a peneira agora está descansando na mureta do terreiro”, e é quase tudo que ele me diz, depois de já ter falado dos assuntos lá do sítio, e eu ter falado da casa e das crianças, e é aí que o Miro diz o que espero, só que não adianta eu falar, já falei mil vezes pra não me dizer isso com aquele seu jeitão de caipira, que a gente pode muito bem se recolher pro quarto sem aquela malícia toda, mas ele só sabe rir naquele seu cacarejo de galo, mas que é verdade é, que a peneira sem a malícia do Miro descansa em certas horas, descansa mesmo, e que antes disso não adianta a gente se espernear, como diz o Miro, não adianta mesmo, por isso que quando pensava na Lucila e na trabalheira toda me impedindo de ir à casa dela, eu só ficava pensando do jeito que o Miro pensa, que a gente só se mexe de faz de conta, porque não é a gente na verdade que se mexe, que tudo acaba entrando nos eixos, e que se não estava dando pr’eu ir à casa da Lucila é que não estava dando mesmo, mas que tudo ia acabar desaguando onde devia, se bem que essas coisas atrapalham a cabeça da gente, porque, como estava pensando outro dia, ainda cruzo os braços e quero ver quem vai limpar as belezuras do Zitinho, é muito complicada essa história toda, por isso é que acho que o Miro tem razão quando diz que a gente não deve pensar muito, que é besteira eu ficar quebrando a cabeça, que nem é da minha conta ficar bulindo nessas coisas, que meu problema são só a casa e as crianças, nada mais que isso, a casa e as crianças, mas, por incrível que pareça, naquele espaçozinho de tempo lá na casa do Luca eu estava às voltas com esses fiapos, me embaraçando neles, e ninguém estranhe não que isso tenha acontecido, ninguém pode imaginar que que pode passar pela cabeça da gente em situação como aquela e até em situação mais esquisita, é bem verdade que tudo se passa em atropelo e misturado, mas, se a gente não toma cuidado, até uma anedota pula fora da memória em velório, só sei que quando pensei em perguntar pro Luca nem sei que que eu poderia ter perguntado, ele já tinha se afastado um pouco, estava parado na entrada do quarto que sai da sala, me aguardando de ombros e braços caídos, não é possível que seja o Luca, não é possível que seja ele mesmo, pensei, e foi aí que saí dos meus novelos, dei uns passos na direção dele sem dizer nada e, assim que me aproximei, o Luca não fez mais que abrir a porta e me dar passagem, logo se recolhendo, se trancando mesmo, e isso me fez desistir de perguntar qualquer coisa, e depois perguntar o que naquele momento, se nem tinha condições de abrir a boca, além de ser em situação assim, como diz o Miro, é melhor andar do que falar, daí que entrei no quarto, onde tinha um par de sapatos no assoalho, arrumados, sapatos grandes, pros pés do Luca, e me ocorreu que aquele quarto, que abria a janela pro quintal, onde só tinha um guarda-roupa alto e uma cama de solteiro, o quarto que eu sabia ser do Dinho, meu afilhado, fiquei perplexa só de imaginar que era aquele então onde o Luca dormia, na certa todas as noites separado da Lucila, quando poderia imaginar, esse homem que despertava fantasias em tantas mulheres… é bem verdade que há tempos corriam comentários maliciosos, que nem quero falar deles, e essa lembrança mexeu comigo, senti um tremendo desconforto pensando nesse caminho, mas logo fui acordada quando, pela segunda vez, senti a mão do Luca me apertando o ombro, “ela deve estar no quarto deles” ele disse, parecendo fazer muito esforço pra dizer tão pouco, um pouco que foi a gota pra inundar meu raciocínio, eu já não sabia pensar mais nada, achei melhor acompanhá-lo, atravessamos a sala em silêncio, só as coisas na cristaleira é que vibraram um pouco, e entramos pelo corredor onde no fundo a casa se comunica com o escritório, mas no meio do corredor ele parou, e assim que abriu a porta à direita, eu logo entrei nesse outro quarto, e ali no chão um outro par de sapatos, menores que os do Luca, mas não tão menores pr’um menino de treze anos, eram do meu afilhado eu não tive dúvida, mas não parei por aí, vasculhei com os olhos até onde aquela penumbra permitia, a cama de casal desarrumada, o lençol amarfanhado deixando um tanto a descoberto o pijama do Dinho, não, não é possível, eu só pensava e, profundamente transtornada pelas coisas escabrosas que me passavam pela cabeça, foi com angústia sufocante que vislumbrei a Lucila num dos cantos do quarto, de cócoras, o olhar perdido, me afastei então apavorada, encontrando o Luca parado ainda no corredor ao lado da porta, daquele mesmo jeito de enforcado com os pés no chão, fiquei olhando pra ele, olhando bem de frente, e sabendo que ele, mesmo de cabeça baixa, não podia ignorar o modo como o olhava, tanto que não demorou e disse “quase trezentos quilômetros de ida e outro tanto de volta num só dia, cheguei e encontrei a casa e a cama deles assim”, e a voz sumida não era a do Luca, continuei a encará-lo e foi quase um murmúrio o que ouvi, mas distingui muito bem cada palavra, “coisas que não ouso falar”, e quando emendou “deixei nosso Dinho num colégio interno”, senti que ele não tinha mais nada pra dizer, deixei o Luca no corredor, acendi a luz do quarto e voei pro canto onde a Lucila estava e, chegando bem perto, não sabia o que fazer, acabei me dobrando de frente com as mãos apoiadas nos joelhos, um esforço pra me manter arcada, e fiquei olhando demoradamente pra ela na esperança de encontrar um ponto de luz naquele seu olhar embaçado que não me enxergava, sofrendo ao vê-la encurralada no canto, a saia do vestido tinha descido pro colo, deixando as pernas, magríssimas, descobertas e, mesmo com o rosto bem perto do rosto dela, não ouvia sua respiração, tive o pressentimento de que a Lucila tinha entrado irremediavelmente num túnel de onde não sairia nunca mais, se entregando a um fim sem volta, meus olhos ficaram molhados, passei a chorar quando dei pelo ruído intermitente dos pingos que caíam no assoalho, não queria acreditar, e foi então que sua imagem inteligente, petulante, desafiadora, me explodiu na memória, dizendo no nosso tempo de curso normal, naquele seu jeito exuberante, cheia de rebeldia, “nós não passamos de umas fêmeas menstruadas”, e eu ali, arcada, fiquei balbuciando em solidariedade feito uma tonta “fêmeas menstruadas”, “fêmeas menstruadas”, e repetia aquelas palavras de outro tempo, mesmo sem saber que solidariedade era essa…
Raduan Nassar, in Obra completa

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