Acho
que devemos ser como aqueles ingleses que mandavam tirar as roupas
quentes do baú porque era outono na Inglaterra — mesmo que eles
estivessem na África Equatorial. Era uma questão de hierarquia: o
calendário nacional é uma instituição permanente, enquanto nossa
circunstância eventual é um acidente. Você eu não sei, mas nessas
coisas eu sou britânico. É outono e, independente da temperatura
ambiente, outono é tempo de sopas.
Há
várias razões para se amar a sopa. Foi com a sopa que começou o
restaurante como nós o conhecemos. No século dezoito, na França,
diferentes guildas controlavam cada tipo de comida — a carne
assada, os patês e embutidos, a caça, o queijo, os pastéis, os
doces etc. — e em nenhum dos seus estabelecimentos sentava-se para
comer. Só os traiteurs podiam preparar e servir refeições
inteiras no local e só os cabaretiers serviam a comida
(comprada de outras guildas) numa mesa com bebidas. Em 1765, um certo
senhor Boulanger começou a servir sopas na Rue dês Poulies em
Paris, porque elas não dependiam de licença. E botou acima de sua
porta a inscrição em latim: “Venite ad me omnes que stomacho
laborati et ego restaurabo”, tornando-se assim o primeiro
restaurateur, ou restaurador, da história.
Alguém
já comparou uma refeição completa a uma recapitulação da vida
sobre a Terra, do caldo primevo onde surgiram as primeiras amebas até
a sobremesa sem qualquer valor nutritivo, mas montada com esmero
arquitetônico, simbolizando o engenho e a futilidade do Homem. A
sopa, portanto, representa uma volta à nossa origem borbulhante.
Mas
acima de tudo a sopa nos dá, como nenhum outro tipo de comida, a
oportunidade de demonstrar nosso prazer à mesa. Os chineses,
inclusive, consideram falta de educação tomar uma sopa em silêncio.
Deve-se sorvê-la ruidosamente, indicando para quem quiser ouvir,
mesmo na rua, que ela está ótima e que a vida, tirando algumas
passagens de extremo mau gosto, vale a pena ser saboreada.
Experimente dizer tudo isto com um canapé.
Às
sopas, portanto. Bravos minestrones, translúcidos consomês e
grossos caldos camponeses com pão cortado no peito. E que venham as
nevascas!
Luís
Fernando Veríssimo, in A mesa voadora
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