sexta-feira, 12 de junho de 2020

Às sopas


Acho que devemos ser como aqueles ingleses que mandavam tirar as roupas quentes do baú porque era outono na Inglaterra — mesmo que eles estivessem na África Equatorial. Era uma questão de hierarquia: o calendário nacional é uma instituição permanente, enquanto nossa circunstância eventual é um acidente. Você eu não sei, mas nessas coisas eu sou britânico. É outono e, independente da temperatura ambiente, outono é tempo de sopas.
Há várias razões para se amar a sopa. Foi com a sopa que começou o restaurante como nós o conhecemos. No século dezoito, na França, diferentes guildas controlavam cada tipo de comida — a carne assada, os patês e embutidos, a caça, o queijo, os pastéis, os doces etc. — e em nenhum dos seus estabelecimentos sentava-se para comer. Só os traiteurs podiam preparar e servir refeições inteiras no local e só os cabaretiers serviam a comida (comprada de outras guildas) numa mesa com bebidas. Em 1765, um certo senhor Boulanger começou a servir sopas na Rue dês Poulies em Paris, porque elas não dependiam de licença. E botou acima de sua porta a inscrição em latim: “Venite ad me omnes que stomacho laborati et ego restaurabo”, tornando-se assim o primeiro restaurateur, ou restaurador, da história.
Alguém já comparou uma refeição completa a uma recapitulação da vida sobre a Terra, do caldo primevo onde surgiram as primeiras amebas até a sobremesa sem qualquer valor nutritivo, mas montada com esmero arquitetônico, simbolizando o engenho e a futilidade do Homem. A sopa, portanto, representa uma volta à nossa origem borbulhante.
Mas acima de tudo a sopa nos dá, como nenhum outro tipo de comida, a oportunidade de demonstrar nosso prazer à mesa. Os chineses, inclusive, consideram falta de educação tomar uma sopa em silêncio. Deve-se sorvê-la ruidosamente, indicando para quem quiser ouvir, mesmo na rua, que ela está ótima e que a vida, tirando algumas passagens de extremo mau gosto, vale a pena ser saboreada. Experimente dizer tudo isto com um canapé.
Às sopas, portanto. Bravos minestrones, translúcidos consomês e grossos caldos camponeses com pão cortado no peito. E que venham as nevascas!
Luís Fernando Veríssimo, in A mesa voadora

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